domingo, 25 de outubro de 2009

Onde os mortos nunca dormem

Por A.A. Gill



Os defuntos borrifados de tinta logo voltarão às alcovas vazias. No momento, o espaço que ocupavam não guarda nada além de centopeias mortas. Algumas múmias ainda jazem em seus elaborados esquifes. Com jeitinho, ergo uma pesada tampa, que não deve ter sido movida por um século, e dou uma espiada lá dentro. O ar escapa com um suspiro espesso, e seu cheiro gruda no fundo de minha garganta. Não é odor de podridão, e sim de caldo de carne misturado com o aroma pegajoso de mofo seco e de camadas finas de gente em pó. É um cheiro dramático, inesquecível, com laivos de silêncio e melancolia, evocando preces incessantes ouvidas a distância, remorsos, saudade – um cheiro ao mesmo tempo repelente e familiar, algo de inédito, mas com estranho e intenso toque de déjà vu.


Nunca saberemos ao certo o que esses cadáveres significavam para as congregações que os prepararam e vestiram. Eles continuam sendo um dos mistérios da Sicília. Ficamos a sós com nossos conceitos e dúvidas ao nos confrontarmos com essas tragicômicas visões da morte. É difícil discernir os sentimentos despertados pelos corpos imobilizados em sua jornada do nada ao nada – mistérios, medos, perdas e esperanças. As contradições da vida, eternas e universais.


A bela cidade de Novara di Sicilia tem uma catedral decorada com devoção. Diante do altar há uma porta secreta que conduz à cripta.


Ao pressionar um botão, o chão se abre, como num filme do James Bond. Descendo por um lance de degraus, topamos com uma série de nichos que contêm diversos corpos em ruínas de prelados. Sentados em assentos de pedra com furos redondos no meio – os escoadouros –, com suas fisionomias graves de múmias, eles conferem ao ambiente um jeitão de banheiro coletivo para onde todos vieram se aliviar juntos. Numa prateleira alta cheia de crânios vê-se também uma caixa contendo dois gatos mumificados naturalmente, a evocar sombras distantes do Egito Antigo. Os bichanos se viram presos na cripta, e nos mandam uma lembrança: mesmo com suas sete vidas, o fim é o mesmo para todos.



Revista National Geographic

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