domingo, 25 de outubro de 2009

Onde os mortos nunca dormem



Por A.A. Gill





Foto de Vincent J. Musi




Um rosto ressecado olha para o firmamento em uma catacumba italiana. Na Sicília, as múmias revelam detalhes sobre a vida e a morte de séculos atrás.




O aeroporto de Palermo chama-se Falcone-Borselino. Soa como o nome de algum seriado policial dos anos 1970, daqueles estrelados por tiras com sobrenome italiano. Bem, não precisa se culpar por não saber que Falcone e Borselino foram bravos magistrados que tentaram pôr fim ao velho domínio do crime organizado sobre a Sicília. Ambos foram assassinados. O povo não gosta de falar da Máfia com estrangeiros ali. Trata-se de um embaraçoso assunto de família, uma tragédia particular, não é da nossa conta.

A Sicília é um lugar cheio de segredos. Dá para sentir isso nas ruas sombrias e barrocas de Palermo, a capital onde o estrago dos bombardeios que marcaram o desembarque dos Aliados, em 1943, ainda não foi totalmente sanado e palácios-cortiços são habitados por refugiados norte-africanos. É um lugar masculino, de gente arisca, belo e ao mesmo tempo oprimido por seu passado de crime e corrupção.

A história da Sicília é um novelão pungente sobre gente miserável e fatalista, do tipo que se encontra em qualquer parte da Europa. Até a década de 1950, os camponeses dali estavam entre os mais pobres do mundo ocidental. Durante séculos, eles cavaram uma esquálida existência, padecendo em vendetas e rixas, injustiça e exploração, crimes de honra e códigos homicidas, tudo envolto em perfume de flor de tangerina e incenso de igreja. Na Sicília, perdura ao longo das eras o hábito de lavar sangue com sangue.

O monastério dos capuchinhos em Palermo é um prédio discreto, anódino. Fica do outro lado da cidade, numa praça tranquila, vizinho a um cemitério, onde, em 1992, a Máfia acertou suas contas com o juiz Borselino. Na porta do monastério, num canto recuado, dois camelôs vendem cartões-postais e guias turísticos. Lá dentro, um frade atrás de uma mesa vende ingressos e mais postais, além de pequenos artigos religiosos. Ele lê seu jornal enquanto o dia se arrasta lá fora.

Descendo por um lance de escada e passando por uma estátua de Nossa Senhora das Dores, achamos a porta da catacumba, espécie de sala de espera dos mortos. É fresco e úmido lá dentro, com um odor acre de especiarias em pó e roupa apodrecida. Pelas janelas altas a luz do Sol se filtra difusa, num fulgor esmaecido. Lâmpadas fluorescentes zumbem no teto, adicionando uma luminosidade anêmica de sala de legista. Pendurados pelas paredes, assentados em bancos, descansando em caixões decrépitos, acham-se ali cerca de 2 mil cadáveres. Eles envergam suas melhores vestimentas, os uniformes de suas profissões terrenas. Não há mais ninguém lá.

Na Europa, o dessecamento e a preservação de cadáveres são um assunto de sicilianos. Há outros exemplos na Itália, mas a maioria dos casos está na Sicília, onde a relação entre os vivos e os mortos é forte. Ninguém sabe ao certo quantos são nem quantos já foram removidos de catacumbas e enterrados em cemitérios por sacerdotes incomodados com essa teologia dos corpos votivos. O fenômeno evoca de imediato uma questão: por que alguém faria isso? Qual a razão de exibir gente morta em lenta decomposição?

Percorro as fileiras de mortos experimentando certa confusão mental ao tentar definir o que estou sentindo. No Ocidente, a gente não costuma ver corpos mortos – a ausência de vida é escondida. Esses cadáveres exalam mistério, exibindo atitudes que parecem revelar convicções pessoais. Examinando os cadáveres com interesse mórbido – pois é isso que a morte evoca nesse lugar –, percebo que a grande diferença entre os vivos e os mortos é que você pode encarar estes últimos de perto, sem esconder sua intensa curiosidade, coisa que os vivos não tolerariam.

Eis que me ponho a pensar se eles não deveriam botar a música Thriller, de Michael Jackson, de fundo musical ali, visto que esses corpos evocam aqueles zumbis de filmes de terror com suas próteses cênicas. Mandíbulas abrem-se em gritos silenciosos, dentes apodrecidos sorriem ameaçadores, órbitas oculares vazias a tudo observam, mãos exibem os nós artríticos dos dedos. É uma turma de braços cruzados pendendo dos arames e pregos que os sustentam, a cabeça largada sobre os ombros, o corpo caindo em câmera lenta sob o esforço de imitar a vida passada.

Revista National Geographic

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