quinta-feira, 15 de outubro de 2009

O melhor abrigo sempre é a família

Preconceito e miséria privam muitas crianças de viver em um lar

LÚCIA NASCIMENTO


Sala do Sítio Agar: iniciativa premiada


Foto: Lúcia Nascimento

"Não existe diferença em ser filha adotiva. Esses pais gostam de mim e querem que eu aprenda muito, por isso me trouxeram para cá." Ana Caroline tem dez anos, e suas brincadeiras preferidas são andar de bicicleta e jogar bola. Desinibida, a menina fala com desenvoltura, oito anos após ter sido adotada por um casal de classe média, que tem ainda duas filhas biológicas. Hoje, Caroline mora em uma confortável casa na zona oeste de São Paulo.

Nos dois primeiros anos de vida, ela viveu institucionalizada, como se encontram hoje 80 mil crianças, segundo estimativas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Esse número pode, no entanto, chegar a 500 mil, segundo pesquisadores como Lídia Dobrianskyj Weber, psicóloga e autora, entre outros, do livro Pais e Filhos por Adoção no Brasil, publicado pela Editora Juruá. Os principais motivos para tal situação são dois: preconceito e miséria.

A preferência dos casais que desejam adotar é por meninas recém-nascidas e brancas – realidade bem diversa das crianças que vivem em instituições, que em sua maioria têm mais de 2 anos, são negras e, não raro, formam grupos de irmãos. Números do Ipea mostram que 60% delas estão na faixa dos 7 aos 15 anos.

Um dado ilustra bem como o preconceito se revela no ato da adoção: era comum as varas de infância e juventude da região sul receberem o cadastro de casais de todo o país, porque nesses estados a probabilidade de encontrar uma criança branca e de olhos claros é maior. Como medida para evitar tais situações, essas varas passaram a dar preferência a casais do próprio bairro ou região.

A miséria, por sua vez, apesar de por lei não configurar motivo para o abandono, é a principal razão que leva crianças às instituições. Muitas têm pais sem residência fixa, ou que foram presos, ou que simplesmente não têm meios de sustentá-las e acabam por deixá-las em abrigos. Eles se vêem apenas nas férias ou em dias de folga, mas os pais não abrem mão do direito que a paternidade lhes garante. Cerca de 90% dos abrigados se encontram nessa situação e, portanto, não podem ser adotados.

Pouco é feito para que essas crianças e jovens voltem para a casa dos pais biológicos, embora os abrigos trabalhem com esse objetivo – raramente com bons resultados. Em outubro passado, o governo federal anunciou um programa de incentivo, que prevê a doação de R$ 1,5 mil a quem tirar um filho do abrigo. A medida deve se efetivar a partir deste ano, mas por ser uma cota única tem grandes chances de não dar em nada.

Em geral, os abrigos pertencem a instituições de caridade ou a grupos do terceiro setor, apesar de alguns receberem também subsídios governamentais. Essa "remuneração", no entanto, é irrisória e calculada a partir do número de abrigados, o que pode incentivar que nada seja feito para encaminhar as crianças às famílias biológicas, já que com menos abrigados o dinheiro também será menor.

Na visão de alguns pesquisadores, a burocracia poderia ser citada como um terceiro motivo para o grande número de institucionalizados, mas não chega a ser determinante no processo, como se poderia imaginar. "A Justiça não tem interesse em manter crianças no abrigo. Muitas vezes a destituição do poder dos pais biológicos demora muito (devido a visitas anuais, por exemplo, que caracterizam vínculo com a criança), e isso deveria mudar. Mas não se trata de burocracia", enfatiza Hália Pauliv de Souza, mãe adotiva e coordenadora há dez anos de um curso de apoio a pais adotivos, em Curitiba.

"Precisamos amparar as famílias que abandonam seus filhos por falta de condições materiais. Contudo, milhares de crianças estão nas instituições por outros motivos [como violência doméstica ou abuso sexual], sem qualquer possibilidade de retornar à família de origem", afirma Lídia. Nesses casos, a adoção seria o melhor caminho.

Tempo de espera

É possível que algumas das crianças – hoje adolescentes – que continuam abrigadas sejam as que brincaram com Ana Caroline no final dos anos 1990. Ela não tem lembranças conscientes desse período, e uma única vez voltou ao local para tirar uma foto de recordação. Durante a conversa, Ana me pede que espere um pouco, sai do quarto e volta com uma mala cheia de fotografias. Revira os álbuns, mas não encontra a que procura. "Quando visitei o abrigo, me senti abandonada e sozinha. Fiquei com medo, porque não conhecia as crianças. Sei que elas brincavam comigo, mas agora sou grande e não preciso mais ir lá."

"Você tem que entrevistar também a minha mãe." E grita, do segundo andar do sobrado onde moram: "Mãe!" Verônica Rocha, de 51 anos, tinha, junto com o marido, Humberto Filho, de 47 anos, o desejo de adotar uma criança para aumentar a família – muito antes da chegada de Caroline.

O processo, desde a entrada dos papéis no fórum até a vinda da menina, durou pouco menos de um ano. "Lembro que fizemos entrevistas, e um dia ligaram dizendo que haviam encontrado nossa filha. Não fizemos muitas escolhas, só queríamos que fosse menina, pois eu acreditava que a experiência de já ter duas filhas me ajudaria na criação da terceira", explica Verônica.

Do dia da ligação até a chegada de Caroline à casa dos novos pais não se passou sequer uma semana. O período de convivência, quando pais e criança trocam experiências antes da adoção – importante para a adaptação de todos – não existiu. "Disseram que podíamos pegá-la dois dias depois, e só nos conhecíamos por foto. Chegamos ao abrigo e ela estava com a malinha pronta."

Psicólogos e assistentes sociais lutam para que esse tipo de situação não aconteça. Porém, o despreparo de pais, dirigentes de abrigo e técnicos envolvidos no processo atrapalha. A qualidade do atendimento varia muito de uma vara para outra. "Para alguns juízes e fóruns, a preparação é um período de avaliação. Não deveria ser apenas isso, e sim um momento para o candidato descobrir os reais motivos que o levaram à adoção", afirma Leila Dutra de Paiva, psicóloga do Tribunal de Justiça de São Paulo.

"Muitas vezes as pessoas ficam aflitas para resolver rapidamente a adoção e não se preocupam em preparar a criança, como se a nova família em si resolvesse tudo. As relações que a criança tem no abrigo são importantes, assim como com a família biológica, e precisam ser consideradas", explica Márcia Regina Porto Ferreira, uma das coordenadoras do Grupo Acesso da Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae.

Além dos técnicos das varas, grupos de apoio à adoção têm o papel de esclarecer casais que desejam um filho sobre os desafios e angústias de viver numa nova família. Inúmeras vezes, por exemplo, pessoas que buscam a adoção tentaram ter filhos de diversas formas e, para elas, o período de espera parece imenso. Os grupos procuram mostrar que existe uma burocracia a ser cumprida, que a adoção é também uma necessidade e um direito da criança e que, assim, o tempo de espera serve igualmente para adaptação.

Dificuldades

Rapidez, no processo de adoção, não é sinônimo de sucesso. Por falta de preparação, alguns pais acabam culpando o abandono e o período vivido no abrigo por problemas enfrentados na educação. O que vigora na sociedade são idéias do início do século 20, quando se acreditava que os primeiros anos de vida eram determinantes. Hoje, esse conceito está ultrapassado e se valorizam as experiências individuais: a primeira infância é muito importante, mas não crucial.

Segundo Márcia Regina, "o período vivido em abrigos pode ser encarado como um grande alívio ou algo insuportável. É necessário entender e respeitar a reação da criança diante da situação".

As relações entre pais e filhos adotivos são tão ou até mais complexas que as biológicas. Sentimentos como medo, amor, respeito e mesmo gratidão estarão mais ou menos presentes de acordo com o que foi vivido até o momento, considerando não só o período pré-adoção, mas também a relação com os novos pais, a família, a escola.

"Vou citar o caso de um menino que chegou à instituição onde meus pais trabalharam como guardiões, em Goiânia. Ele veio marcado com queimaduras de cigarro, apesar de ter apenas dois anos. Somente aos 11 foi adotado, e não foi fácil. Depois do período de convivência, começaram as dificuldades. Psicólogo, psiquiatra, assistente social, todos ajudaram na adaptação. Hoje, adolescente, ele é o orgulho dos pais", relata Lúcia Milazzo Kossobudzki, pesquisadora dedicada à questão do abandono e da adoção e fundadora da ONG Recriar.

Mesmo com peculiaridades, certas dificuldades são relatadas como intrínsecas ao processo de adoção, como o caso da criança que desafia e pede atenção o tempo todo, por exemplo. "Minha filha se pergunta por que foi abandonada e acredita que os pais biológicos não gostavam dela. Essa é uma questão que fica para toda a vida e, com isso, ela acaba se sentindo inferior. Daí querer testar suas relações atuais", comenta Verônica.

Nesse ponto, o acompanhamento de profissionais das varas de infância e juventude deixa a desejar. No caso de Caroline, apenas duas vezes após a adoção uma assistente social visitou a família. A ajuda acaba vindo de grupos de apoio e de atendimentos psicológicos, como o prestado pelo Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo.

É nesses lugares que pais podem compartilhar experiências e falar de suas fantasias, medos, discutir mitos e preconceitos, inclusive para que se mude a forma de encarar a situação, o que vem acontecendo aos poucos desde a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), há 17 anos.

Preconceitos e direitos

Joana (nome fictício) é solteira, branca, está na faixa dos 30 anos e adotou uma menina negra de oito meses há poucos dias. Ela caminha pela sala do Sesc Vila Mariana, onde acontece a reunião mensal do Grupo de Apoio à Adoção de São Paulo (Gaasp), mostrando seu bebê com orgulho. Pára o carrinho perto dos amigos, comenta que convidou parentes para conhecerem Maria e se surpreendeu com comentários em que havia insinuações preconceituosas.

De fato, muitas vezes esse tipo de reação parte da própria família extensa (tios, avós, primos), que rejeita quem não é "do sangue". "As pessoas têm medo de que a marginalidade seja genética, então querem saber se a criança é filha de um assassino ou de uma prostituta. Quando se pensa em adoção, imagina-se um bebê recém-nascido, bonito e saudável. Mas é preciso pensar que a adoção não vai dar um filho a casais inférteis, e sim dar uma família a crianças que não têm", enfatiza Lídia Weber.

Felizmente, embora o preconceito ainda seja grande, mudanças positivas garantem direitos a pais e filhos adotivos. Quando os avós maternos e a avó paterna de Oscar Henrique Cardoso – jornalista de 36 anos que atua no Distrito Federal – foram adotados no início do século 20, eles não tinham os mesmos direitos que seus irmãos biológicos, ao contrário da filha de Cardoso, adotada há um ano.

Nos períodos colonial e imperial, as crianças abandonadas eram deixadas nas "rodas dos enjeitados", dispositivos rotatórios de madeira onde bebês eram colocados anonimamente. Quem os recebia eram as Santas Casas; alguns eram institucionalizados, outros acabavam doados a "famílias criadeiras", como eram chamadas. Só em 1916 a adoção foi incluída no Código Civil brasileiro, de forma precária: apenas maiores de 50 anos e sem filhos legítimos podiam adotar. E, se os pais viessem posteriormente a ter filhos biológicos, o adotado perdia direitos e não poderia receber herança, por exemplo.

Somente em 1990, com a promulgação do ECA, ficou estabelecido que todos os filhos – legítimos ou não – tinham os mesmos direitos. O estatuto ressalta a importância da participação ativa da criança no processo, estabelecendo, por exemplo, que a adoção a partir de 12 anos só deve ser feita com o consentimento do jovem. Hoje, pessoas maiores de 18 anos podem adotar, independentemente do estado civil. Os pais adotivos também têm direitos que antigamente eram impensáveis, como a licença-maternidade. O ECA foi um salto qualitativo em termos legais, e a luta agora é para que ele seja cumprido.

Adoção à brasileira

Por outro lado, há os que preferem deixar direitos de lado e partir para uma adoção ilegal, conhecida como "à brasileira" – quando os pais biológicos entregam o filho diretamente a outras pessoas. No Brasil, metade das adoções acontece dessa forma, de acordo com pesquisa realizada em 2001 por Lídia Weber. Em muitos casos, os juízes as anulam (quando chegam às varas de infância e juventude), por desconhecer sua real motivação.

No final do ano passado, a mídia noticiou o caso de um jovem casal da Bahia que teria recebido uma televisão, um aparelho de DVD e R$ 50 em troca do filho de nove meses. A situação veio a público antes da entrega da criança, que foi encaminhada pelo Conselho Tutelar a uma casa de passagem – abrigo temporário onde permanecerá até tudo ser resolvido.

A única maneira oficial de adotar uma criança no Brasil é por meio das varas de infância e juventude. Entretanto, são vários os motivos que levam os casais a recorrer à informalidade, entre os quais se destaca a impressão de lentidão que o processo legal passa.

De qualquer maneira, o tempo de espera e a preparação são necessários para evitar casos extremos, como os de devolução do adotado – o que acontece com freqüência, por despreparo dos pais. Muitos dos casais que buscam a adoção tentaram ter um filho biológico e não conseguiram (mais de metade devido a infertilidade), ou têm o objetivo de "salvar o casamento", e ficam frágeis diante de qualquer problema. Quando o processo é feito sem o apoio de profissionais, como nas entregas diretas ou "adoções à brasileira", é mais comum encontrar situações desse tipo.

Outras culturas

Fora do Brasil, o processo de adoção tem contornos diferentes. Nos Estados Unidos, cada estado tem suas leis. Os pais podem escolher a criança, e as chamadas adoções abertas, em que a família biológica e a adotiva mantêm relacionamento até a criança se adaptar, são cada vez mais comuns. Já as motivações são as mesmas dos brasileiros: infertilidade, vontade de aumentar a família e de oferecer convivência familiar a quem não tem.

Nos países europeus, a preparação merece destaque. Na Espanha, onde em 2006 foram adotadas 4.472 crianças procedentes de 36 outros países, há cursos prévios obrigatórios. Atualmente, 34 organismos internacionais mantêm convênio com o Brasil para adoções. Destes, três são espanhóis e 16, italianos.

Na Europa também é comum a criança abandonada não ser levada a um abrigo, mas viver com famílias acolhedoras, que cuidam dela até que seja encontrado um lar permanente. Dados de 2003, do Departamento de Proteção Social de Cidadania de Portugal, mostram que mais de 6,3 mil crianças, durante esse ano, foram acolhidas dessa maneira. No Brasil essa iniciativa existe, mas é incipiente.

Na Polinésia Francesa, todas as crianças são voluntariamente acolhidas, e os casais estéreis recebem quantos filhos desejarem. Lá, ninguém esconde sua condição de adotivo. Entre eles, a relação parental não é determinada pela biologia, mas pelo social.


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Mude um Destino

São cerca de 30 minutos dentro do ônibus de São Paulo até Cajamar (SP), onde fica a associação Sítio Agar, que recebe crianças abandonadas portadoras do vírus HIV. O abrigo é composto de cinco casas pintadas de amarelo, um lago onde passeiam aves e um campo onde crianças e adolescentes se divertem. No interior, salas e quartos que se confundem com os de qualquer família com muitos filhos.

A associação existe há 15 anos e foi fundada por um missionário holandês que vive no Brasil. Hoje, é lar para 53 crianças, das quais 40 soropositivas, e vive de doações da comunidade e de organizações parceiras. Por reproduzir um ambiente familiar e incentivar a volta das crianças à família biológica, ganhou o terceiro lugar na campanha Mude um Destino, promovida pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) para premiar os abrigos com melhor atuação, e cujos objetivos são incentivar boas práticas e conscientizar a população sobre a importância de mudar a forma de encarar a adoção.

De âmbito nacional, a campanha distribuiu 100 mil cartilhas por todo o país com informações sobre o processo. "A realidade nos abrigos é muito dura, pois sua capacidade financeira é limitada. Os premiados são os que procuram, dentro do possível, usar os recursos para inserir a criança na comunidade e trabalhar com ela de forma não isolada", explica Francisco Oliveira Neto, coordenador da campanha e juiz da Vara de Infância e Juventude de Florianópolis.

No Sítio Agar, as crianças saem para estudar desde pequenas e podem passear sozinhas pela cidade a partir dos 12 anos. Periodicamente, seus colegas de classe visitam o abrigo. Promovendo assim a inclusão já desde a infância, essa iniciativa busca alcançar o objetivo maior, e tão necessário, da mudança de mentalidade.

Revista Problemas Brasileiros

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