domingo, 25 de outubro de 2009

Onde os mortos nunca dormem

Por A.A. gill



Os corredores abrigam de forma segregada religiosos e profissionais, tais como médicos, advogados e uma parcela de imponentes soldados de opereta em seus uniformes de carabinieri. Há um corredor reservado às mulheres, onde nosso guia salienta que podemos contemplar a moda do passado. Os esqueletos perfilam-se em seus andrajos encardidos. Uma capela lateral é devotada às virgens, algo chocante, uma cruel e patética pecha, pelos padrões liberais contemporâneos – a de ser virgem –, que elas têm de arrastar pela eternidade afora. Quando foram enterradas ali, essas virgens devem ter sido consideradas símbolos de pureza em meio à degeneração da carne que a vida e a morte implicam.



Depois, vem uma capela dedicada às crianças, que vestem suas roupas de festa, posicionadas como bonecos zumbis. Um deles se acha sentado na cadeira de ninar com um esqueletinho no colo, talvez seu irmão menor, compondo um quadro lamentável e risível, de tão grotesco.



Os mortos da Sicília não são como as catacumbas de Roma, uma escavação arqueológica. Os corpos foram colocados nesse lugar para serem vistos, prazer pelo qual você tem de pagar pequena quantia. Cartazes lembram ao visitante que ele deve se comportar de maneira respeitosa e não pode tirar fotos – que, no entanto, são vendidas pelos frades. Não está claro se estamos diante de uma experiência religiosa ou cultural, mas que é uma atração turística, isso é.



A primeira e mais velha múmia é de um frade: Silvestro da Gubbio, de pé em seu nicho desde 1599. (A palavra “múmia” deriva do termo árabe para betumem, substância assemelhada à resina enegrecida que os antigos egípcios usavam para embalsamar cadáveres.) A maioria dos corpos é do século 19. No começo eram apenas frades e outros sacerdotes ligados ao monastério. Com o tempo, os religiosos ganharam a companhia de beneméritos, dignatários e notáveis. Ninguém sabe ao certo o que deflagrou a onda de mumificação. Provavelmente por acaso, descobriu-se que um corpo deixado numa cripta de calcáreo poroso sob determinada temperatura fria acabava ressecando, em vez de apodrecer. Daí nasceu um método: os recém-falecidos eram levados a câmaras chamadas de escoadouros. Ali eram deitados num estrado de terracota sobre bueiros para onde escorriam os fluidos corporais, fazendo com que seus corpos se ressecassem feito presunto. De oito meses a um ano depois, os cadáveres eram lavados com vinagre e vestidos com suas melhores roupas para serem acondicionados em caixões ou pendurados nas paredes.



A preservação de corpos é realizada nos mais diversos lugares, mas é raro que eles sejam exibidos dessa maneira. Tanta gente aportou na Sicília com suas práticas e crenças que resquícios disso tudo acabam aflorando nos tempos modernos, mesmo estando suas origens há muito esquecidas. Já se sugeriu que talvez a prática da mumificação seja um eco residual de ritos muito antigos, pré-cristãos. Nem todos os defuntos ressecavam; alguns deviam apodrecer, levando à crença de que a preservação exprimia a vontade divina, uma intervenção da mão de Deus, mantendo certos indivíduos tais como eram antes da morte, espécie de marca distintiva de sua bondade em vida. Da mesma forma que as relíquias dos santos são utilizadas para reforçar orações e crenças, talvez se acreditasse que Deus preservava alguns corpos para reforçar a fé das pessoas. Ou, quem sabe, as catacumbas cumprissem o papel de grandes vanitas, palavra latina que significa “vazio”, apontando para a insignificância da vida terrena e o caráter transitório da vaidade humana. As catacumbas seriam ilustrações da vacuidade das ambições terrenas e da inevitabilidade da morte, apontando para a tolice que era acumular fortunas na Terra.



Em anos mais recentes, alguns corpos foram preservados de forma mais elaborada, por meio de injeções químicas, o que tirou a responsabilidade das mãos divinas e deixou a tarefa a cargo de agentes funerários. Numa das capelas, uma garotinha chamada Rosalia Lombardo repousa em seu caixão. Ele aparenta dormir sob um imundo lençol marrom. Ao contrário de muitas outras múmias ressecadas, essa mantém o próprio cabelo, apanhado num laço de seda amarela. Cachos de boneca tombam sobre sua fronte escurecida. Rosalia tem os olhos fechados, com cílios bem preservados. Se ela não estivesse cercada por crânios sorridentes e pela podridão reinante no lugar, Rosalia poderia passar por uma criança dormindo no caminho de volta de uma festa. O naturalismo e a beleza da cena são cativantes. O recado, inquietante e amedrontador, é de que a vida não passa de um breve sopro.





Revista National Geographic

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