quarta-feira, 21 de abril de 2010

zoológico humano

Hábitos e pensamentos são observados por atentos telespectadores sedentos por ocasiões degradantes

por Tatiana Martins Alméri *





Começam novamente as apresentações dos zoológicos dos humanos. Nesses zoológicos você pode observar os hábitos, os costumes, as maneiras de relacionamentos, as bases da alimentação, as disputas entre grupos e como se comunicam. Você poderia imaginar que um dia isso iria ocorrer? Algumas pessoas ficariam trancadas - em uma casa-jaula - e você poderia observar vários pontos de suas intimidades. Quais seriam as propostas de se fazer algo parecido com isso? Para que realmente serviriam esses tais zoológicos dos humanos?

O mais curioso é que os humanos que se submetem a essa exposição, ou melhor, a essa clausura, sentem-se estrelas, personalidades, famosos, como se, no momento da reclusão, fizessem algo que trouxesse um crescimento ou um acréscimo social a ponto de se tornar um ídolo¹ nacional.

Clausura? Palavra de significado extremamente forte, porém, considerado como elemento necessário na tentativa de manter a ordem social. Se a existência de clausura é adequada ou não, temos teorias diferenciadas que apresentam de maneira metódica e ampla pontos divergentes, cada qual com suas contribuições. No entanto, à parte dessas contradições teóricas, na prática, clausura é uma pena escolhida socialmente àqueles que não seguem as normas e leis sociais. Portanto, clausura é uma punição, algo que é visto de uma maneira negativa socialmente, mas no caso do zoológico dos humanos a clausura passou a ser um desejo nacional.

Ficar conhecido no Brasil inteiro de um dia para o outro, ser um participante do zoológico humano, um deles mais conhecido como Big Brother Brasil (BBB), tornou-se uma das metas da sociedade brasileira, e não só dela: na esteira da globalização, os zoológicos dos humanos ocorrem em vários países.

O senso comum sempre apresentou os seres humanos como melhores que os outros animais, como os detentores do topo da hierarquia dos seres vivos do planeta Terra, mas a Antropologia e a Sociologia sempre estiveram em um caminho mais coerente: somos todos seres necessários ao ciclo alimentar (e não pirâmide, a qual coloca os homens no topo. Afinal, quando morremos, ninguém se alimenta do nosso corpo? Se estamos no topo seria porque ninguém, nem os vermes, se alimentariam da gente; o que, como sabemos, não é o que ocorre) e, por isso, possuidores da mesma importância no planeta.

NA PRÁTICA, CLAUSURA É UMA PENA ESCOLHIDA SOCIALMENTE ÀQUELES QUE NÃO SEGUEM AS NORMAS E LEIS SOCIAIS. PORTANTO, CLAUSURA É UMA PUNIÇÃO, ALGO QUE É VISTO DE UMA MANEIRA NEGATIVA SOCIALMENTE, MAS NO CASO DO ZOOLÓGICO DOS HUMANOS A CLAUSURA PASSOU A SER UM DESEJO NACIONAL

Utilizo a expressão "zoológico dos humanos" por ser um parâmetro social que pode ser visto dessa maneira: pessoas que estão presas em um certo local, que são alimentadas, estimuladas a praticar certas atuações, que estão sob supervisão e suscetíveis a uma observação constante por outras pessoas, que constroem máscaras sociais². E tudo isso por quê? Para que outras pessoas, essas sim estão no topo da hierarquia dos humanos, possam ganhar dinheiro como consequência da clausura.

Isso já ocorreu anteriormente com outros seres humanos, na época da imigração italiana ao Brasil. Passando pelo porto de Dakar, existiam algumas gaiolas que tinham famílias de negros presos, e caso os imigrantes quisessem conhecer pagavam uma quantia para - consciente ou inconscientemente - dar estímulos à escravidão que tinha, utopicamente, acabado (PATRON, 1928).

Nesta época as discussões do fim da exploração com relação à escravidão foram muito intensas. Hoje, nas reflexões da maioria da sociedade brasileira, é inadmissível prender pessoas que nada fizeram de prejudicial segundo as regras sociais, porém, os reality shows não são classificados dessa maneira, pelo contrário, são vistos como comuns e altamente divertidos.

Por incrível que pareça, a submissão à exposição do próprio ser é legítima, como teorizou La Boétie. Existem várias razões pelas quais as pessoas se submetem à dominação, entretanto a principal delas consiste na submissão calcada no espírito de servidão voluntária (LA BOÉTIE, 2009)³. Além disso, a "submissão legítima" passa a ser a mais eficiente, pois é nela que o submisso se sente livre e assim dá abertura a uma maior supremacia do dominador.

A existência dessa submissão e exposição de pessoas nesses zoológicos humanos, entre outros parâmetros, é, além do caráter de exploração, uma real comparação e nivelamento do que somos com outros animais. Tratamos os homens de maneira indigna e atroz, tal como lidamos com os outros animais. Sempre em troca da base do sistema capitalista: o dinheiro.

Dê uma "espiadinha" só nisto: até as inspirações e modelos de hoje passaram a ser essas "grandes estrelas do país", que ascendem de um dia para o outro e, na maioria das vezes, se apagam com a mesma velocidade. Daí fica a pergunta: será que a existência desses zoológicos dos humanos serve simplesmente para enclausurar pessoas a troco de dinheiro ou para restringir discussões socialmente mais relevantes?

A segunda questão é a mais cabível atualmente. Restringir pensamentos a ponto de chegar a uma "não reflexão" da população com relação a parâmetros sociais, políticos e econômicos é algo que torna mais fácil o domínio e consequentemente a submissão. A política do pão e circo de Júlio Cesar tem funcionado há muitos anos.

E é dessa maneira que a clausura continua: nos vendemos a cada dia e, principalDe olhos vendadosmente, a servidão voluntária se prolonga a medida que nascemos, já em um cerco que pretende não dar a nós a abertura para a reflexão. E para divertir um povo que não discute pontos necessários à construção social, os reality estão entre nós há 10 anos, construindo cabeças irreflexivas e submissas voluntariamente.

E, dessa maneira, nos sentimos livres; no início, a troca da exposição do ser como mercadoria era julgada, a ética social não permitia que joelhos e colos aparecessem de uma maneira tão exposta na televisão, hoje, sentímo-nos livres por podermos vender nosso corpo, praticamente nus, na íntegra, voluntariamente, submetendo-nos certamente ao sistema capitalista e aos que estão no topo da pirâmide financeira. Porém, temos em nossas mãos a escolha. O que não podemos é julgar as diferentes formas de vender o corpo, pois todas estão à busca do Deus do capitalismo, o Dinheiro.

A "Febre" dos Reality Shows

O chamado reality show não é um formato recente na televisão. Eles surgiram nos EUA no final da década de 1940 e início de 1950, baseados em programas de rádio. São considerados pioneiros o "Esta é sua vida", apresentado por Ralph Edwards, e o "The Original Amateur Hour", este precursor dos shows de calouros e talentos. Em 1973, o documentário televisivo "An American Family" trouxe em doze episódios o cotidiano da família Laud. Por conta de sua fórmula, este é tido por especialistas como, de fato, o primeiro reality show da TV.

E m 1992, a Music Television (MTV) levou ao ar o "The Real World" e provocou inúmeras cópias e versões. Na atração da MTV, sete jovens permaneceram juntos por três meses. A ideia era observar a interação entre eles, com direito a brigas, romances, intrigas, etc. Depois disso, emissoras de TV e produtoras lançaram produtos parecidos. Fundador da Endemol, o holandês John de Mol criou em 1999 o sucesso mundial Big Brother. No Brasil, a febre dos reality começou com "Casa dos Artistas" (SBT) e intesificou-se com "No Limite" e "Big Brother Brasil" (Globo) e "A Fazenda" (Rede Record).


Fontes:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Reality_show (Wikipedia.org)
http://lazer.hsw.uol.com.br/reality-show.htm (HowStuffWorks)

1. Figura que representa uma divindade que se adora/ Pessoa à qual se prodigam louvores excessivos ou que se ama apaixonadamente. Diz-se de certas figuras que desfrutam de grande popularidade (artistas de cinema, cantores populares, jogadores de futebol, etc.) Cf. HOUAISS, 2000.

2. As máscaras sociais implicam na "ideia de interações sociais, sobretudo a de interações simbólicas", no sentido de Gof-fman. Mas, acima de tudo, implica interações sociais em um espaço social específico e histórico, carregado de significados e relações desiguais entre agentes portadores de diferentes capitais sociais. Implica, por fim, um campo, eivado de diferenças de posição e estruturado. Dentro dessa matriz, o habitus gera diferenças contínuas entre indivíduos como maneira de arranjá-los estruturalmente" (MONTAGNER, 2006).

3. As máscaras sociais implicam na "idéia de interações sociais, sobretudo a de interações simbólicas", no sentido de Goffman. Mas, acima de tudo, implica interações sociais em um espaço social específico e histórico, carregado de significados e relações desiguais entre agentes portadores de diferentes capitais sociais. Implica, por fim, um campo, eivado de diferenças de posição e estruturado. Dentro dessa matriz, o habitus gera diferenças contínuas entre indivíduos como maneira de arranjá-los estruturalmente" (MONTAGNER, 2006).

* Tatiana Martins Alméri é socióloga pela Universidade Federal de Santa Catarina, mestre em Sociologia Política e docente na UNIP e na FATEC (taalmeri2@hotmail.com)

Revista Sociologia