sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Durante décadas, psicanalistas associaram as doenças mentais a certos comportamentos religiosos, mais precisamente às possessões mediúnicas. Hoje, após anos de pesquisas, os médicos admitem a contribuição da religião no tratamento de patologias

Por Roberta de Medeiros


PERSONALIDADE MÚLTIPLA


Muitos estudos apontam que a prática religiosa traria inúmeros benefícios para a saúde mental de um indivíduo, pois a doutrina traria novas metas e objetivos, em relação aos comportamentos desajustados

Então, como explicar o fenômeno? Seria transtorno de personalidade múltipla? Outra pesquisa investigou a ligação entre o estado de transe dos espíritas e o distúrbio, que se caracteriza pela presença de duas ou mais identidades distintas que, repetidamente, tomam controle do comportamento, acompanhadas por uma incapacidade de lembrar-se de informações pessoais importantes.

O problema poderia explicar o que ocorre com o médium? O psiquiatra Mário Rodrigues Louzã, do Departamento de Psiquiatria da USP, investigou a questão. O seu estudo abrangeu 72 médiuns de São Paulo que, submetidos às questões, sinalizam a presença da personalidade múltipla (DDIS). O estudo foi apresentado no Congresso da Associação de Psiquiatria Norte- Americana, em San Diego (EUA).

Os voluntários responderam perguntas como: você já sentiu que existe outra pessoa dentro de você? Essa pessoa já tomou o controle do seu corpo? Há momentos em que você se sente irreal, como num sonho? Já ouviu vozes conversando dentro da sua cabeça? A conclusão do estudo: "As experiências dos médiuns não têm nenhuma relação com aquelas que constam do questionário que identifica personalidade múltipla", concluiu o psiquiatra.

Os resultados demonstraram uma forte presença do comportamento dissociativo relacionado a experiências religiosas. Num período de 30 dias, foi observada uma média de 4,6 casos de incorporação; 2,9 de escutar espíritos e 2,8 de recebimento de mensagens espirituais.

No entanto, não foi constatada uma relação patológica da dissociação com religião. A pesquisa ainda demonstrou bom controle social do fenômeno. Apenas 4 das 62 respostas alegaram história de abuso sexual na infância, o que demonstra que comportamentos dissociativos podem estar presentes em uma população bem-adaptada.

Segundo o psiquiatra, não há evidências de que a dissociação surja como mecanismo de defesa ou de que seja decorrente de traumas psicológicos. Ao contrário, Louzã lembra que as reações dos médiuns são aprendidas. Além disso, o controle sobre elas tende a aumentar com o tempo de treinamento recebido pelos médiuns. Isto é, quanto mais a mediunidade for praticada, menor a incidência de doenças mentais. "Os fenômenos que ocorrem no contato religioso estão sob o controle do líder do centro, se a situação escapa ao controle, ele logo percebe que não é o que se espera e intervém", comenta.


Há muito tempo difundido pela mídia e estudado há mais de dois séculos, o tratamento espiritual, ou as cirurgias espirituais, ainda geram polêmicas entre psiquiatras e estudiosos da área

"NÃO HÁ EVIDÊNCIAS DE QUE A DISSOCIAÇÃO SURJA COMO MECANISMO DE DEFESA OU DE QUE SEJA DECORRENTE DE TRAUMAS"

O psiquiatra lembra que existe uma correlação entre dependência da recompensa e comportamento dissociativo relacionado à atividade religiosa. "São pessoas que gostam de chamar a atenção para si e costumam fazer coisas para causar boa impressão. É um temperamento que lembra a atitude das crianças. Elas fazem de tudo para ganhar a atenção das pessoas ao seu redor", compara Louzã, que acredita que a prática religiosa traga benefícios a quem sofre de doença mental. "Em muitos casos, os líderes ajudam, porque ensinam as pessoas a trabalhar seus comportamentos desajustados."


ALENTO PARA O DEBATE

Todo mundo conhece alguém que buscou religiões espiritualistas (kardecismo, umbanda e candomblé) com intuito específico de curar uma determinada doença. No Brasil, a prática é largamente difundida. A possessão é vista com bons olhos. Dificilmente é encarada como um traço de instabilidade mental, como ocorre em países de forte cultura industrial, por exemplo. Entre os católicos (80% dos brasileiros), uma grande parcela se declara não praticante (90% deles) e participa de cultos espíritas. A busca é livre.


Existiria um lado religioso e um lado médico? Há alguma distinção entre doença espiritual e doença material? Os líderes religiosos acreditam que sim. Essa visão, porém, não é compartilhada pela Psiquiatria, que descarta a existência de uma fronteira entre a doença da alma e a doença da mente. Para a Psiquiatria, ou a doença existe ou não.

REVISTA PSIQUE

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