domingo, 25 de outubro de 2009

Onde os mortos nunca dormem

Por A.A. Gill


Rosalia tinha 2 anos quando pegou pneumonia e morreu. Louco de dor, seu pai pediu a Alfredo Salafia, um emérito embalsamador, que a preservasse. O efeito é terrível, de uma vivacidade trágica, e o pesar parece ainda pairar sobre sua pequena cabeça loira. Em Palermo, Rosalia é citada como semidivindade, um anjinho mágico. O taxista diz: “Você viu a Rosalia? Bella”.

Savoca é uma aldeia silenciosa que escala em espiral a encosta de uma colina até atingir um ponto em que a vista se descortina até o mar. É um lugar retrancado em si mesmo, onde Francis Ford Coppola filmou O Poderoso Chefão. O bar em que os personagens Michael e sua trágica esposa celebram sua festa de casamento se encontra em uma pracinha acanhada com o mesmo aspecto que tinha há 37 anos nas telas.

No topo da colina há um convento que mais parece uma hospedaria para mochileiros do que uma instituição gótica da Idade Média. Só há duas freiras ali, ambas indianas, de Jharkhand, leste do país. Elas vestem malhas e jaquetas por cima do sári. Numa saleta lateral, dispostos em caixões provisórios de madeira compensada, veem-se pouco mais de 20 cadáveres, que estão sendo estudados por um trio de cientistas.

Eles formam um time improvável: Arthur Aufderheide, americano octagenário que começou como patologista até se transformar num dos maiores experts mundiais em múmias; Albert Zink, um alemão volumoso que dirige o Instituto para Múmias e o Homem do Gelo, no norte da Itália; e Dario Piombo Mascali, um jovem siciliano elétrico, nervoso, sempre encanado com alguma coisa, entusiástico e motivado.

Encontro Mascali inclinado sobre uma caixa, erguendo com delicadeza a batina de um padre do século 19. Ele procura por alguma amostra orgânica de qualquer parte íntima do padre para que o professor Zink possa realizar alguns testes. Uma bolsinha de pele fina e poeirenta sai em sua mão. Dela ele extrai uma amostra de meio centímetro, etiquetada. A reverendíssima múmia não vai sentir falta de seu escroto, imagino.

Grande quantidade de informação pode ser coligida desses corpos sem vida sobre seu dia-a-dia no passado – dieta, doenças e longevidade. Saber mais sobre sífilis, malária, cólera e tuberculose séculos atrás pode nos ajudar a enfrentá-las melhor hoje. Os cientistas movem-se de forma metódica, aferindo a idade e a altura dos cadáveres, examinando crânios e dentes. Quase toda essa gente sofria de problemas dentários – depósitos de tártaro, gengivas encurtadas, cáries e abscessos. Alguns abdomens são examinados. Um dos corpos teve seu tecido mole removido e outros foram empalhados com trapos e folhas, inclusive de louro, talvez para mitigar o fedor ou, ainda, porque se supunha que tivessem valor conservativo. Rechear aquelas formas encolhidas era um jeito de lhes atribuir aparência vívida.

As peles têm o aspecto ceroso de pergaminho; as roupas estão úmidas e pegajosas; as caras, inchadas e bocejantes; as bocas, exibindo laringes encarquilhadas e mostrando línguas enrugadas para o médico examinar. Os cientistas demonstram respeito pelos corpos, sem perder de vista que são seres humanos – do mesmo jeito que nós –, embora se refiram a eles como “isso”, mantendo assim uma distância desapaixonada quando vão extrair um molar, por exemplo.

Alguns anos atrás essas múmias foram vandalizadas na cripta. Alguém entrou ali e jogou tinta verde nelas. Gerando um efeito lúgubre e humilhante, a tinta borrifou suas caras e seus casacos, dando a impressão de ainda estar pingando, o que as torna ainda mais parecidas com personagens de trem fantasma. As freiras que cuidam dessa estranha congregação olham a tudo com piedade e desagrado. Elas me confessam que aqueles corpos deveriam ser enterrados, permitindo que retornem ao pó de onde vieram. Uma delas afirma que não há nada espiritual ou edificante a se aprender com aquilo.


Revista National Geographic

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