terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Camus: um grito de esperança silencioso 2

Com seu ensaio O Mito de Sísifo, que caminha entre a Filosofia e a Literatura, Camus tenta explicar o absurdo e o suicídioPor

Paulo Roberto Pedrozo Rocha

Tem-se a noção de absurdo quando o homem, confrontado pelo non-sense da própria existência, põe em questão o ato de viver



Édipo, personagem da tragédia de Sófocles, é um exemplo de que o homem é limitado, precisa viver até o fim para julgar seu destino, já que o sentimento do absurdo pode nascer da felicidade


É preciso mais uma vez lembrar o contexto no qual Camus estava inserido. Este contexto histórico ansiava por respostas. Camus fazia questão de não tê-las e desfazer dos pretensos senhores da razão. Camus conheceu o filósofo Jean-Paul Sartre durante a Segunda Guerra Mundial, fato este que iria marcar seu pensamento e a relação de sua obra com a Filosofia.

O início desta amizade entre Camus e Sartre só não é mais importante do que o seu final. Divididos pela diferença no posicionamento político de sua época e porque viam na Arte - de um modo geral -, e na Literatura - de uma maneira particular - finalidades diversas, os amigos se separaram em um dos poucos casos em que o fim de uma amizade ocupou as páginas dos jornais seculares. Contudo, Camus não oferece respostas.

O próprio fim da amizade forçou as pessoas a escolher entre o rígido realismo dialético de Sartre e a recusa quase niilista proposta por Camus. O pano de fundo era a adesão ou não ao comunismo do tipo soviético como resposta aos anseios e à sensação de vazio trazidos pela Segunda Guerra.

No realismo sartreano, havia uma saída: a prevalência dos operários, ainda que intelectualizados. Em Camus, um ponto de interrogação preenchia os espaços ocupados pela certeza comunista. Neste sentido, Camus assinalava: "...o método aqui definido confessa a sensação de que todo conhecimento verdadeiro é impossível. Só se pode enumerar as aparências e apresentar o ambiente."

"Há dentro de nós a exigência absoluta de sermos eternos e a certeza de o não sermos. O absurdo é a centelha do contato destes dois opostos" VERGÍLIO FERREIRA

NOÇÃO DE ABSUDO



No entanto, uma questão se impõe: o que é exatamente esta noção de absurdo tão instigante na natureza humana e tão incômoda para Camus? Primeiro é preciso uma distinção fundamental. O sentimento do absurdo não é o mesmo que a noção de absurdo. Isso porquê, em toda parte, experimentamos o sentimento do absurdo. Uma simples revolta com as condições do cotidiano, uma tristeza repentina, causada pelo reencontro de alguém que muito nos marcou no passado e agora está ausente. Enfim, o sentimento do absurdo pertence, por assim dizer, ao vulgo.


Há pontos em que Filosofia e Literatura se esbarram. Camus faz isso, assim como Choderlos de Laclos, que no romance Ligações Perigosas retrata a antessala da Revolução Francesa sob a ótica iluminista das relações de classe e poder

Já a noção de absurdo é um passo a mais. Sua definição ontológica - para usar uma terminação aristotélica evocada por Camus em O Mito de Sísifo - se propõe pelas consequências advindas da sensação do absurdo. É quando o homem, confrontado pelo non-sense da própria existência, coloca em questão se o ato de viver é digno de sua natureza.

A partir daí, Camus acentua o caráter cáustico de sua análise. Para ele, "se fosse preciso escrever a única história significativa do pensamento humano, deveria ser a de seus arrependimentos sucessivos e de suas impotências" (Camus, 2004:32). Surge, enfim, o romancista trágico - uso o termo trágico no registro da tragédia como gênero literário e não pela comum adjetivação a que estamos habituados - capaz de ver a nulidade dos esforços humanos tentando dar sentido a uma existência que em si, por definição, é desprovida dos sentidos.

Afinal, Sísifo está sempre na base da montanha, sua alegria consiste nisso. Se a obra de Camus fosse uma composição musical talvez pudéssemos caracterizá-la como um réquiem. Sem dúvida um réquiem como Mozart uma vez propôs. Como se sabe, os réquiens eram compostos para o funeral de alguém. Mozart o fez sob encomenda a um rico comerciante, mas na verdade era na sua própria morte que pensava.


Imagens da Segunda Guerra Mundial. Camus escreveu, durante o auge do existencialismo, que pregava uma Literatura engajada por influência da proximidade dos horrores da Segunda Guerra Mundial, mas não seguiu esta corrente

Nesta perspectiva, O Mito de Sísifo pode se referir à morte das esperanças de Camus em fatos tão ilustrativos como significativos da história francesa da metade do século XX. Muitas tinham sido as esperanças depositadas no Partido Comunista do pósguerra.

A própria Resistência - que para muitos historiadores foi mais romanceada pelos franceses do que seria capaz de atestar a realidade - havia proposto isso. No final, as atrocidades do regime soviético, suas alianças primeiras com Hitler e seus métodos similares a todo regime totalitário central, acabaram por apagar a chama de esperança acesa pelo comunismo. Camus estava entre aqueles que sopraram, ou viram soprar, a chama desta esperança.


Sísifo era portador de uma certeza que poderíamos chamar de "alegre": ele é dono de seu destino


Mas há uma alegria a ser notada. Sísifo, o mito grego condenado ao eterno trabalho de rolar a pedra de sua condenação morro acima e depois buscá-la ladeira abaixo, era portador de uma certeza que poderíamos chamar de "alegre" caso esta palavra não ofenda o espírito da obra: ele é dono de seu destino. Não deve seu futuro aos deuses. Seu futuro é o mesmo que seu passado. Se confunde com o presente:


"Toda a alegria silenciosa de Sísifo consiste nisso. Seu destino lhe pertence. A rocha é a sua casa. Da mesma forma, o homem absurdo manda todos os ídolos se calarem quando contempla seu tormento...se há um destino pessoal, não há um destino superior ou ao menos só há um, que ele julga fatal e desprezível. De resto, sabe que é dono de seus dias." Libertar-se de seus ídolos. Essa talvez fosse a consequência positiva da noção de absurdo. Na verdade, Camus apresenta Sísifo como um herói do absurdo.

O desprezo que este alimenta pelos deuses, seu ódio à morte e sua paixão pela vida fizeram com que ele fosse supliciado ao castigo eterno. Mas não importa: sua resistência abriu o caminho a uma felicidade diferente. Camus observa: "A felicidade e o absurdo são dois filhos da mesma terra. São inseparáveis. O erro seria dizer que a felicidade nasce necessariamente da descoberta absurda. Às vezes ocorre também que o sentimento do absurdo nasce da felicidade. 'Creio que está tudo bem', diz Édipo, e esta frase é maldita. Ressoa no universo feroz e limitado do homem e ensina que nem tudo foi experimentado até o fim. Ela expulsa deste mundo um deus que havia entrado nele com a insatisfação e o gosto pelas dores inúteis. Faz do destino um assunto humano, que deve ser acertado entre os homens."


O Suicídio de Lucrecia, de Jörg Breu, o Velho. Para Camus, decidir se a vida vale ou não a pena de ser vivida é a grande questão da Filosofia

Para silenciar as reflexões aqui contidas - o silêncio é para Camus o sinal de que o absurdo se instaura - uma vez que concluí-las seria demasiado pretensioso, seguimos o exemplo de Camus e evocamos, com a eloquência da tragédia grega, nascedouro do romance moderno, as palavras do Corifeu que na peça de Sófocles, Édipo Rei, talvez apresente a melhor síntese do que se quis ou não quis dizer sobre o tênue fio que liga a Filosofia com a Literatura: "Habitantes de Tebas, minha Pátria! Vede este Édipo, que decifrou os famosos enigmas! Deste homem, tão poderoso, quem não sentirá inveja?

No entanto, em que torrente de desgraças se precipitou! Assim, não consideremos feliz nenhum ser humano, enquanto ele não tiver atingido, sem sofrer os golpes da fatalidade, o termo de sua vida." (Sófocles, Édipo Rei) O grito de esperança é silencioso. O que atrita o homem comum, se torna natural. A busca continua a mesma... tudo parece voltar ao princípio pois "só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da Filosofia"


Albert Camus (1913-1960), escritor e filósofo. A possibilidade cotidiana de morrer permeia sua obra filosóficoliterária, que tem o absurdo como marca


Revista Filosofia

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