segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Embate intrínseco 1

Religião como conteúdo escolar no Brasil esbarra na dificuldade em conciliar interesses e no choque entre conhecimento científico e prática religiosa

por EMERSON JOSÉ SENA DA SILVEIRA




A sociologia da linguagem contempla o ramo da semântica social dos discursos, e com ela aprende-se que nenhuma palavra é ingênua e neutra. Michel Foucault, no livro A ordem do discurso, analisa o “efeito de verdade” contido nos discursos emitidos pelos agentes sociais enredados nas malhas das estruturas sociais. As práticas discursivas apontam para um grande dilema: o que fazer com o Ensino Religioso, ou Educação Religiosa, no ensino brasileiro? Na Europa essa questão nem se coloca com tanta força. Os índices de desinteresse pela religião rondam os 75%, exceto entre imigrantes e a população muçulmana. A socióloga Danièle Hervieu-Léger, analisando a presença do catolicismo na França (e seus movimentos internos, como o carismático, a entrada nas mídias eletrônicas, etc.), afirma que está ocorrendo uma “exculturação” das tradições cristãs. Ou seja, elas deixam de falar à sociedade, para serem um discurso minoritário e isolado.


NO BRASIL, antropólogos e sociólogos em alentados debates, como Marcelo Camurça, se debruçam sobre fenômenos e percebem uma direção de “inculturação”, apontando para um diálogo vigoroso entre as tendências sociais modernas e o catolicismo. De fato, a influência cristã e católica ainda é imensa. O texto da LDB, sancionado em 1996, afirmava que o ensino religioso poderia ocorrer, mas sem “ônus para os cofres públicos”. Outra redação posterior suprimiu essa frase. “Ensino Religioso” é um termo que possui um efeito de poder, mesmo que se mude para “Educação Religiosa”.


Entre cientistas sociais da religião, apesar das divergências, não se fala mais em extinção das manifestações religiosas

Há nele uma enorme carga de significados sedimentados e, hoje, não se sabe ao certo do que se trata e não há concordância a respeito. Um lodaçal de sentidos que levantam polêmicas e provocam resistências generalizadas, questionamentos e protestos contra a implementação efetiva (e suas formas) do “Ensino Religioso” nas escolas da rede pública (estadual e municipal), tanto por parte de alguns grupos e associações científicas quanto de segmentos religiosos, como alguns grupos pentecostais. Os primeiros vêem na religião o “atraso” e a persistência da tradição, os segundos consideram o “Ensino Religioso” como uma ingerência católica e uma luta por hegemonia.Tanto um grupo quanto outro possuem uma concepção tradicional da religião. Essa concepção não capta as atuais dinâmicas religiosas na sociedade moderna. O primeiro grupo, dos opositores em geral à questão religiosa, não percebe que o estatuto do religioso mudou. Entre cientistas sociais da religião, apesar das divergências, não se fala mais em extinção das manifestações religiosas ou em sua migração completa para o âmbito da vida privada. Se por um lado há o crescimento da oferta de templos, serviços e produtos ligados à religião, por outro se aprofunda o que os teóricos chamam de secularização, a partir do avanço das tecnologias e das ciências em geral.


Michel Foucault (na foto) analisa o “efeito de verdade” nos discursos dos agentes sociais. E são exatamente as práticas discursivas que apontam para um grande dilema quanto à religião no ensino brasileiro




A tensão entre ciência e religião foi analisada por Max Weber, que definiu cinco áreas de confronto: a esfera sexual-erótica, a artística, a política, a intelectual e a econômica



O SEGUNDO grupo resiste à tolerância religiosa, por ter uma posição que tende a negar a autonomia de religiosidades diferentes daquilo que se considera “normal” e “correto”. Esse grupo não está restrito aos evangélicos pentecostais, mas é difundido entre todas as famílias religiosas. Contudo, a idéia de que o ensino religioso é “coisa de católico” revela uma percepção parcialmente correta das forças e relações entre Estado e religião. Essa parcialidade da razão está relacionada à evolução histórica e semântica do termo “Ensino Religioso”, pleno de estereótipos. De fato, o “Ensino Religioso” ministrado era até recentemente, com poucas exceções, uma espécie de catecismo religioso, católico ou cristão, pouco ou nada disfarçado.Dessa forma, o “Ensino Religioso” era e ainda tende a ser compreendido como o ensino de uma fé, de dogmas, de coisas religiosas, de fórmulas e orações, apesar de muitas iniciativas que procuram superar essa perspectiva confessional. Essas percepções são integrantes dos estereótipos, cuja força está naquilo que podemos chamar de economia cognitiva, ou seja, economia da compreensão sobre uma realidade.


A idéia de que ensino religioso é “coisa de católico” revela percepção parcialmente correta de forças entre Estado e religião

Os estereótipos economizam o investimento da compreensão, pois compreender um fenômeno exige investir tempo, cognição e vontade, o que na maioria das vezes não acontece e não é realizado, optando- se sumariamente por “catalogar” e dar por encerrada a interminável tarefa da compreensão.Um verdadeiro “caldo” de informações, muitas vezes desconexas (ouvi dizer, ouvi falar, vi na internet, fulano falou, etc.), formam um bloqueio à compreensão. Não à toa, os estereótipos sobre a prática religiosa circulam o tempo todo nos discursos cotidianos, nas conversas entre professores, alunos e entre outros grupos sociais. Dos estereótipos emergem termos, registrados em conversas populares, como “crente-fanático”, “espírita-macumbeiro”, “candomblé/ umbanda-adepto do demônio”, “católico- idólatra”, “religiãoalienação”, “ateu-coitado”. Mas será mesmo que o “Ensino Religioso” é bandeira católica?Pode-se discutir e contestar se hoje ele ainda o é, na luta para reconquistar a hegemonia do campo ideológico educacional. E, porém, sua história semântica aponta, pelo menos em sua origem, para isso, embora a situação hoje tenha se tornado complexa, com muitas variáveis políticas e culturais.





Revista Sociologia

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