domingo, 17 de janeiro de 2010

Triste história de um herói sem glória

A saga do padre brasileiro Landell de Moura, cientista pioneiro

CELIA DEMARCHI



O padre Landell de Moura Foto: Reprodução


Responda rapidamente: quem é o pai da aviação? E o rádio, quem foi que inventou? Com certeza você acertou a primeira pergunta, mas provavelmente errou a segunda, ainda que tenha pensado no físico italiano Guglielmo Marconi, no genial croata naturalizado americano Nikola Tesla ou mesmo no físico canadense Reginald Aubrey Fessenden. Na verdade, o pioneiro na transmissão de som por meio de ondas eletromagnéticas foi um brasileiro.

Pouca gente sabe disso, o que é surpreendente, até porque a vida de Roberto Landell de Moura, contemporâneo de Alberto Santos Dumont, inclui diversos ingredientes instigantes. Nascido em 1861, em Porto Alegre, ele foi, além de padre, livre pensador e cientista visionário – previu, no fim do século 19, os princípios da televisão e do controle remoto por rádio, descobriu o efeito Kirlian (a “aura” luminosa dos corpos) e praticou exorcismo. Os mais de 40 cadernos manuscritos que deixou versam sobre religião, filosofia, parapsicologia e eletricidade. Em vez de um lugar na história, porém, tal currículo lhe rendeu má reputação – Landell de Moura tinha fama de feiticeiro e chegou a ser agredido por fiéis católicos.

Na opinião do jornalista José Marques de Melo, professor emérito da Universidade de São Paulo (USP) e diretor da cátedra Unesco da Universidade Metodista de São Paulo, entre os motivos do quase anonimato do padre cientista está um sentimento nacional que ele chama de “complexo de colonizado”: “Valorizamos tudo o que vem de fora e escondemos o que se produz aqui”. Melo, porém, tem feito sua parte para resgatar o legado brasileiro, por exemplo ao organizar a série Personagens que Fizeram História, em quatro volumes, editada pela Imprensa Oficial de 2005 a 2009, a qual reúne 72 perfis, inclusive o de Landell de Moura: “Quase não se fala dele nem mesmo nos cursos de comunicação, porque falta suporte”, diz o professor, referindo-se à escassez de bibliografia.

Aos poucos, no entanto, os fatos emergem. A obra mais completa sobre o criador do rádio, fonte das informações citadas acima (Padre Landell de Moura: um Herói sem Glória, de Hamilton Almeida) foi publicada no Brasil em 2006, pela Editora Record. Ironicamente, dois anos depois de um outro livro sobre sua saga, do mesmo autor, ter saído na Alemanha, pela Debras Verlag sob o título Pater und Wissenschaftler (“Padre e cientista”). Os dois livros, além de obras menos completas anteriores, resultaram dos esforços quase solitários do autor, um jornalista paulistano: “Acredito que a publicação na Alemanha facilitou a edição no Brasil”, diz Almeida.

Ele investiga a vida do inventor desde meados da década de 1970. No ano passado, com mais três admiradores do personagem, o jornalista lançou o Movimento Landell de Moura, com o objetivo de promover o reconhecimento oficial do inventor no pais(http://www.mlm.landelldemoura.qsl.br/).


Também por ironia, a centelha que levaria Almeida à pesquisa foi acesa por um chileno, Júlio Zapata, seu professor no curso de jornalismo da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), em São Paulo, em 1976. Zapata indicou-lhe o livro O Incrível Padre Landell de Moura: A História Triste de um Inventor Brasileiro, de Ernani Fornari, publicado em 1960 pela Editora Globo, e enfatizou que se sabia muito pouco sobre o cientista. Fascinado, Almeida começou ali uma longa investigação que o levaria a descobrir, por exemplo, que o padre pode ser considerado precursor não apenas no caso do rádio, mas também da televisão, do teletipo, do controle remoto por rádio e da fibra óptica. Tais são as conclusões, por exemplo, de estudiosos do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Telebrás, de Campinas (CPqD), que, de acordo com o jornalista, interpretaram textos e desenhos técnicos deixados pelo inventor: “O Brasil teria largado na frente em telecomunicações se tivesse aproveitado seus conhecimentos, que ele inclusive patenteou no Brasil e nos Estados Unidos”.


Um dos 14 filhos do capitão Ignácio José Ferreira de Moura e de Sara Marianna Landell, Landell de Moura se interessou por ciências e filosofia ainda na puberdade e foi orientado pela família a seguir a carreira eclesiástica. Enviado para Roma, matriculou-se no Colégio Pio Americano e na Universidade Gregoriana, onde estudou física e química. Em 1886, aos 25 anos, foi ordenado padre.

Naquela época o mundo já conhecia o telégrafo com fio, invento patenteado em 1837 pelo americano Samuel Morse, que revolucionou as comunicações, eliminando as fronteiras intercontinentais. Michael Faraday já havia publicado seu tratado sobre a indução, no mesmo ano em que James Clerk Maxwell formulara a teoria eletromagnética (1873). Foi também nesse período que Heinrich Hertz comprovou a existência das ondas eletromagnéticas (1888). Estava, portanto, traçado o caminho para as comunicações sem fio. Marconi, Tesla, Fessenden e Landell de Moura transitaram simultaneamente nesse campo, e a invenção da radiotelegrafia e, mais tarde, a do rádio acabaram atribuídas ao italiano.

Marconi fez as primeiras demonstrações do telégrafo sem fio em 1895, na Inglaterra. Entretanto, antes dele – que teria plagiado os estudos de Tesla –, Landell de Moura havia provado que, além de sinais, também o som podia viajar codificado a bordo de raios luminosos e ser captado num ponto distante.

O padre brasileiro construiu seus aparelhos no fim do século 19, a partir de descobertas já consolidadas. Uma das mais essenciais, que inclusive está na base da tecnologia do telefone de Graham Bell, é a propriedade de variação da resistência elétrica do selênio. Seu “telefone sem fio”, como chamou o invento, era dotado de transmissor de som modulado por ondas eletromagnéticas de um feixe de luz, as quais ele fazia incidir, precisamente, sobre uma célula de selênio afixada no receptor, colocado à distância. A luz sensibilizava o selênio, que decodificava os sinais pela variação de sua resistência e os mandava para um fone de ouvido.

Pioneirismo

Embora não existam registros datados, é provável que as experiências pioneiras de transmissão de voz de Landell de Moura tenham acontecido entre 1890 e 1894 ou por volta de 1899, segundo Almeida. Sua primeira transmissão pública documentada ocorreu em 3 de junho de 1900, em São Paulo (entre o bairro de Santana e a Avenida Paulista). De todo modo, portanto, bem antes da divulgada por Marconi, que só conseguiu o feito em 1914, 17 anos depois de ter realizado a primeira transmissão de sinais por meio de ondas eletromagnéticas, inaugurando o telégrafo sem fio. Já Fessenden conseguiu transmitir publicamente o som em 23 de dezembro de 1900, seis meses depois da experiência comprovada do brasileiro. O canadense obteve uma patente para sua invenção, nos Estados Unidos, em setembro de 1901, também seis meses após a emissão de uma patente brasileira para a criação de Landell de Moura, em março daquele mesmo ano, sob o número 3.279. No pedido de registro, o padre cientista descrevia um “aparelho destinado à transmissão fonética à distância, com fio e sem fio, através da terra, do espaço e do elemento aquoso”.

Sem conseguir a esperada repercussão no Brasil, e com grande sacrifício, segundo relata Almeida em seu livro mais recente, o padre Landell foi para os Estados Unidos e lá obteve, em 1904, três patentes para seus aparelhos wave transmitter (transmissor de ondas), wireless telephone (telefone sem fio) e wireless telegraph (telégrafo sem fio). Em sua edição de 12 de outubro de 1902, o diário americano “New York Herald” trouxe ampla reportagem sobre as experiências com transmissão de voz. Citava Landell de Moura, lembrando que o brasileiro havia feito várias demonstrações públicas da tecnologia em 1900 e 1901, em território brasileiro.

Ao voltar ao Brasil, no fim de 1904, com as patentes americanas na bagagem, o padre cientista imaginava que finalmente conseguiria apoio para consolidar suas invenções. Escreveu ao presidente da República, Francisco de Paula Rodrigues Alves, solicitando dois navios da esquadra de guerra para fazer uma demonstração. Ao ser procurado por um representante do governo, porém, empolgou-se e disse que desejava os navios o mais distantes possível um do outro, fora da baía da Guanabara, pois quando seus aparelhos fossem aperfeiçoados, no futuro, serviriam inclusive para comunicações interplanetárias. “Não o levaram a sério”, diz Almeida. O funcionário nunca mais voltou a procurá-lo.

Enquanto isso, o Brasil começava a importar tecnologia de telégrafo sem fio da alemã Telefunken – a primeira estação, instalada no morro da Babilônia, no Rio de Janeiro, foi inaugurada em 14 de julho de 1907. Poucos anos mais tarde, em 1919, Marconi vendeu sua empresa de comunicação, a Marconi Wireless Telegraph Company, à General Electric Company, dos Estados Unidos, onde, no ano seguinte, foi inaugurada a primeira emissora comercial de rádio, a KDKA, em Pittsburgh, na Pensilvânia. No Brasil, a primeira transmissão oficial de rádio aconteceria em 7 de setembro de 1922, durante as comemorações do centenário da Independência, no Rio de Janeiro.

Radioamadores

Landell de Moura é o patrono dos radioamadores brasileiros e foi por intermédio deles que sua história passou a ser divulgada na Alemanha. Quando soube da existência do padre inventor, no início da década de 1980, Alda Niemeyer, radioamadora há 33 anos (ela tem hoje 89), foi tomada pela mesma paixão que moveu Almeida. Descendente de alemães e suíços, Alda, que mora em Blumenau (SC), começou a pesquisar e, ao mesmo tempo, escrever artigos sobre Landell de Moura, em português, inglês e alemão. Logo conheceria Hamilton Almeida, de quem se tornou amiga, e traduziu seu último livro para o alemão. Pater und Wissenschaftler foi lançado na Alemanha em 2004, durante um encontro mundial de radioamadores, que naquele ano aconteceu na cidade de Konstanz e, segundo Alda, reuniu cerca de 7 mil aficionados: “A repercussão do livro foi maravilhosa nos países onde se fala alemão”, diz, referindo-se a Bélgica, Áustria e Suíça, além da Alemanha.

Almeida e Alda encabeçam o Movimento Landell de Moura, junto com o também radioamador Daniel Figueiredo, de Aracaju, e o matemático Luiz da Silva Netto, de São Bernardo do Campo, no ABC paulista, que escreve artigos, inclusive técnicos, detalhando as invenções do padre, e os publica, em especial, num site de radioamadores brasileiros (http://www.qtcbrasil.com.br/).

O fascínio pelo personagem justifica-se plenamente. O padre cientista deixou marcas intrigantes nas cidades onde morou: Porto Alegre, em que nasceu e viveu os últimos anos, Roma, onde estudou, além do Rio de Janeiro e várias cidades paulistas – São Paulo, Santos, Campinas, Mogi das Cruzes, Queluz e Botucatu. Sem contar Nova York.

Em cerca de 30 anos de pesquisas, o jornalista Almeida percorreu toda a trajetória do inventor no Brasil, entrevistando familiares, pessoas que o conheceram, técnicos e cientistas, esmiuçando seus documentos, desenhos e escritos, pinçando notícias de jornais do início do século 20.
Foi nos manuscritos de Landell de Moura, entre os quais há até receitas médicas, reunidos no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, que o jornalista encontrou provas de que o padre havia descoberto também o efeito Kirlian, bem antes do russo Semyon Davidovich Kirlian, que o faria no fim dos anos 1930. Já no início do século passado o padre desenvolveu uma técnica de fotografia do halo eletroluminescente dos corpos, ao qual chamou de “perianto”, e deixou farto material sobre o assunto.

Em Mogi das Cruzes, onde viveu entre 1906 e 1907, Landell de Moura chegou a praticar exorcismo, atendendo a uma menina de nome Rosa, filha de Manoel Correia da Rocha. A experiência foi registrada em mais de 200 páginas manuscritas. Entre as conclusões do episódio, o padre afirmou: “Existe uma força desconhecida e que, segundo os fenômenos que manifesta, deve ser classificada entre as forças físicas”. Disse ainda que “essa força inteligente é imaterial e incorpórea”, e que “apesar de imaterial pode agir sobre a matéria e impressionar nossos órgãos sensíveis”.

Já em Porto Alegre, em 1919, segundo narrou Hernani de Araújo, amigo do inventor, ao jornalista Almeida, Landell de Moura livrou do sonambulismo, provavelmente por meio de telepatia, uma jovem histérica que perambulava à noite, andando até sobre muros. Araújo descreveu assim a cena da cura: “O sacerdote desembrulhava um pequeno recipiente de água benta quando a atitude da moça se modificou por completo. A fisionomia era de ódio. Os olhos arregalaram-se, imóveis”. De acordo com o relato, a moça então se dirigiu ao padre com as palavras “mais ignóbeis que se possa imaginar”, descrevendo episódios da vida íntima do religioso que ninguém conhecia, parecendo vê-lo, “apesar do olhar vidrado”. Enquanto o padre rezava, a jovem desmaiou, recuperou o estado normal e nunca mais manifestou a doença, segundo a testemunha.

Em 1976, Almeida encontrou o coroinha de Landell de Moura em Mogi das Cruzes – Benedicto Olegário Berti, que também relatou suas lembranças: “Nas missas [o padre] levava uma caixinha para o altar e a colocava perto do cálice. A um sinal vindo de dentro da caixinha parava a missa e começava a falar em italiano com aquele objeto estranho, que respondia baixo”.
Tais episódios causaram suspeita. Fiéis católicos quebraram os aparelhos de Landell de Moura, chamando-o de bruxo, e a Igreja jamais o apoiou, como ele, sem dúvida ingenuamente, chegara a esperar. Bem antes do primeiro registro oficial de radiodifusão no Brasil, em 1922, o padre teria se recolhido, destruído seus equipamentos e encaixotado seus livros, testemunhando depois o sucesso do rádio, que, em 1928, quando ele faleceu (no dia 30 de junho, aos 67 anos), já seria uma realidade em todo o mundo.

Inventor certo no país errado

Apesar de sua importância, as descobertas de Roberto Landell de Moura, feitas no final do século 19, não reverteram em nenhum benefício nem para ele nem para o país. Mesmo que vivesse agora, porém, é pouco provável que elas tivessem outro destino.
Há hoje no Brasil quase 100 mil cientistas em atividade, mas, segundo Shozo Motoyama, professor de história da ciência da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, os trabalhos desses estudiosos têm poucos canais de comunicação com o mercado. Em sua opinião, existem dois motivos para isso: não só há carência de agências oficiais, que acompanhem de perto e estimulem as pesquisas, como falta ousadia aos empresários. “O governo se empenha em divulgar os números de doutores e de trabalhos produzidos, mas não mostra o mesmo interesse pela qualidade nem busca aproveitar essa produção. Já os empresários brasileiros têm muita capacidade de ganhar dinheiro, mas não gostam de se arriscar.”

São vários os exemplos de tecnologia nacional que o Brasil relegou a segundo plano. As pesquisas com álcool combustível, por exemplo, datam do início da década de 1920, mas só foram retomadas na crise do petróleo dos anos 1970 e aperfeiçoadas recentemente. Nesse caso, o país conseguiu, apesar disso, manter-se na liderança global (embora os Estados Unidos estejam à frente nas pesquisas da segunda geração de etanol, a partir de celulose).

Em microeletrônica, por sua vez, levou a pior. Francisco Assis de Queiroz, também professor de história da ciência da FFLCH, lembra que a Escola Politécnica da USP desenvolveu protótipos de computadores nos anos 1960, que acabaram desmontados e esquecidos. Pode estar aí a origem do crescente déficit da balança comercial do país nessa área.

O Brasil só fabrica componentes eletrônicos de baixo ou médio valor agregado e importa todos os de maior valor, já que a produção destes demanda investimentos extremamente altos, que a iniciativa privada brasileira teria dificuldade para assumir sozinha (segundo Queiroz, nos países desenvolvidos, que lideram o mercado, o setor tem apoio governamental).

Já em biotecnologia, o especialista vê mais possibilidades de avanço, pois a atuação do país é efetivamente forte na área, que, além disso, demanda aportes mais modestos de capital para transformar pesquisa em produtos.


Revista Problemas Brasileiros

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