sábado, 27 de fevereiro de 2010

O segredo por trás de O Segredo 1

O maior fenômeno literário do segmento de auto-ajuda adapta teorias baseadas na ciência para fornecer uma alternativa racional à conquista da felicidade e do sucesso

Reportagem: Pablo Nogueira


Posso falar em dinheiro por experiência própria, porque um pouco antes de descobrir o Segredo meus contadores me informaram de que minha empresa tinha sofrido um grande prejuízo naquele ano e que iria falir em três meses... Então eu descobri o Segredo, e tudo em minha vida - incluindo a saúde de minha empresa - mudou completamente... Eu sabia com cada fibra do meu ser que o Universo daria, e deu. Deu de um modo que eu nunca tinha imaginado... Eu quero contar a você um segredo do Segredo. O atalho para qualquer coisa que você queira na sua vida é SER e SE SENTIR feliz agora! É o meio mais rápido para levar à sua vida dinheiro e qualquer outra coisa que queira. Concentre-se em transmitir para o Universo esses sentimentos de satisfação e felicidade... Quando transmite sentimentos de alegria, eles voltam a você como as experiências da sua vida. A lei da atração está refletindo seus pensamentos e sentimentos mais recônditos na forma de sua vida."

O parágrafo acima saiu da pena da autora australiana Rhonda Byrne e está no livro "O Segredo", o maior lançamento da história da auto-ajuda. O best seller vendeu no Brasil 250 mil cópias em apenas um mês. Nos EUA, ultrapassou a marca dos 6 milhões de livros de janeiro para cá. Para ter uma idéia do fenômeno, basta saber que outro campeão de vendas nessa categoria, "Quem Mexeu no Meu Queijo", foi adquirido por 2,5 milhões de pessoas no mundo todo, entre eles, 46.529 brasileiros - isso apenas nos últimos 12 meses. "O Segredo" não é só livro. Antes de tornar-se grande best seller (sobretudo nos Estados Unidos), a obra nasceu como um documentário - que já vendeu 1,7 milhão de cópias em DVD - criado pela própria Rhonda.

Inspirada no livro "The Science of Getting Rich" ("A Ciência de Ficar Rico") - escrito em 1910 por Wallace D. Wattles (1860-1911), um dos pioneiros na arte de unir idéias baseadas na ciência com a literatura de auto-ajuda -, a produção do documentário "O Segredo" teve início em agosto de 2005 e foi concluída no final daquele ano. O filme foi gongado pelos executivos do Channel Nine australiano, e sua exibição acabou cancelada. Depois de um acordo, todos os direitos ficaram com Rhonda, que lançou o filme na internet e logo o transformou em livro. O burburinho na web chamou a atenção da produção do programa da apresentadora norte-americana Oprah Winfrey, que se identificou com a teoria proposta na obra. "Sempre vivi de acordo com a lei da atração", disse a rainha da mídia norte-americana em seu programa.

Em apenas duas aparições no "Oprah Winfrey Show", Rhonda e seus "professores" - gurus de auto-ajuda que colaboraram no livro - chamaram a atenção do público dos EUA e transformaram "O Segredo" em fenômeno. A isso se soma uma embalagem que remete a uma caixinha misteriosa e lacrada, o achado do título e, num pacote só, a "solução" que vários compêndios de auto-ajuda oferecem isoladamente (conquista da riqueza, do amor e de toda a sorte de bens materiais). E há também o senso de oportunidade da autora, que tira proveito da atual legião de céticos que querem acreditar numa mudança, mas sem precisar passar pelo filtro da religião. Para tanto, Rhonda recorre a conceitos derivados da ciência. Galileu conversou com cientistas e pensadores para descobrir por que, afinal, o conhecimento científico entrou na receita milionária e popular da auto-ajuda.

No livro, Rhonda diz popularizar um antigo conhecimento secreto, que teria sido parcialmente preservado nos ensinamentos de religiões. Esse "segredo" permitiria a cada um realizar absolutamente todos os seus desejos. Todos mesmo. No documentário, há depoimentos em que os entrevistados contam como concretizaram ambições como a compra de uma mansão, de um carro, a cura de um câncer de mama e a extinção de contas recebidas via correio, substituídas por cheques.

Revista Galileu

O segredo por trás de O Segredo 5

Reportagem: Pablo Nogueira




Por falar em lendas árabes, "O Segredo" usa outra para exemplificar o funcionamento da lei da atração. Trata-se de "Aladim e a Lâmpada Maravilhosa". O documentário defende que o gênio é uma representação do Universo, sempre pronto a atender os pedidos que cada um lhe faz constantemente por meio de seus pensamentos e emoções. A história serve para sugerir que o Universo está sempre realizando nossos desejos. E, se não estamos felizes com o que estamos recebendo, basta mudarmos a maneira como pensamos e o Universo atenderá sem falhas. "Na religião, o pedido é como se fosse uma negociação entre duas partes, na qual o fiel é uma pessoa, e Deus é outra. Já na magia é tiro e queda", diz Pierucci.

Pois é esse discurso de "eficiência máxima" que pode fazer com que homens e mulheres do século 21, acostumados a viver numa sociedade de alto desenvolvimento tecnológico, se joguem de cabeça no pensamento mágico e na auto-ajuda, especialmente os adeptos da new age (nova era), movimento surgido nos anos 1970 e que mistura elementos de várias religiões e filosofias. É o que pensa o antropólogo inglês Andrew Dawson, da Universidade Lancaster. "As pessoas da nossa época são fascinadas com a ciência. Ela é vista como a aplicação prática de um conhecimento que é altamente eficiente e que proporciona sempre o efeito desejado. Os adeptos da new age acreditam que, se realizarem corretamente certos rituais e práticas específicos, encontrarão as respostas pelas quais procuram. A ciência oferece à new age um modelo no qual se espelhar", diz.

Mas a eficácia não é o único aspecto que seduz e atrai tanta gente para a espiritualidade new age, que permeia todo o discurso de "O Segredo", tanto no livro quanto no documentário. Ela é capaz de dialogar com indivíduos de classe média de todos os países industrializados do mundo, do Japão ao Brasil, pois oferece elementos que são valorizados pela vida moderna. Entre eles estão a autonomia intelectual - o senso de descobrir suas próprias verdades, em vez de meramente aceitar dogmas prontos vindos das religiões tradicionais - e a busca de riqueza e qualidade de vida. "A new age diz que não há problemas em possuir a riqueza e a estabilidade que a classe média de todos os países já tem. Nem em procurar mais riqueza e sucesso", diz Dawson.

Além de servir como um combustível para a imaginação, há um último segredo importante em "O Segredo", de Rhonda Byrne: o impacto emocional que o filme e o livro conseguiram criar em milhões de pessoas. Mais uma vez, a obra retoma os elementos essenciais da auto-ajuda. Neste caso, no que ela tem, talvez, de mais concreto, que é a sua capacidade de criar motivação. Assim, quando um livro com uma "verdade" apresentada de forma muito forte cai nas mãos de uma pessoa que pode estar numa situação difícil, ela se pergunta: "E se eu tentar?". Afinal, muita gente tem uma grande vontade de acreditar que de fato exista um segredo que possa mudar a vida. É essa expectativa de que algo pode melhorar que realmente pode causar transformações e melhoras. E não "O Segredo" em si.

Revista Galileu

O segredo por trás de O Segredo 4

Reportagem: Pablo Nogueira


Remota, mas uma possibilidade. Assim, será então que pode estar nos efeitos do pensamento sobre o misterioso mundo quântico a chave da lei da atração que é anunciada em "O Segredo"? "Não", diz Marcelo Gleiser, astrofísico e colunista de Galileu. E dá suas explicações para o porquê. "No nosso mundo cotidiano e macroscópico, esses efeitos são muito suprimidos. Não dá para transportar as idéias de uma esfera para a outra. Um elétron pode atravessar uma parede, por exemplo, mas nós não podemos."

Alguns estudos levantam a possibilidade estatística de o nosso pensamento afetar a realidade. O físico João Bernardes Filho, professor da PUC-RS e autor de "Física e Psicologia" (EdiPUCRS), cita como exemplo os experimentos feitos no Laboratório de Estudos de Anomalias em Engenharia (PEAR), que iniciou suas atividades em 1979 na Universidade Princeton, nos EUA, e foi fechado em fevereiro passado.

Os pesquisadores do PEAR realizaram milhares de experimentos para tentar demonstrar uma suposta capacidade da mente humana de interferir no funcionamento de máquinas mecânicas e eletrônicas. Os resultados dos pesquisadores do PEAR despertaram a curiosidade do astrônomo Carl Sagan (1934-1996), que em seu livro "O Mundo Assombrado pelos Demônios" diz que as afirmações dos estudiosos de Princeton mereciam ser avaliadas.

E foram. Das conclusões não saiu nada que pudesse validar algo parecido com a lei da atração. "Os estudos indicam que o grau de influência do pensamento sobre os eventos seria muito pequeno, da ordem de 0,3%", diz João Bernardes. Ou seja, as chances de obter algum resultado favorável aplicando o pensamento intencionalmente sobre uma situação específica seriam mínimas.

Mas isso não desestimula os autores de auto-ajuda interessados em unir suas idéias a conceitos científicos. Pelo contrário. Desde o final do século 19, esse tipo de literatura já fazia referências a idéias tiradas de disciplinas científicas ou de avanços tecnológicos. A então recente chegada do telefone fertilizava o terreno sobre o qual os autores da época semeavam suas idéias. Afinal, se a voz podia ser transmitida à distância, por que não os pensamentos?

Apesar da passagem dos anos e da aceleração do desenvolvimento tecnológico, uma característica une os leitores do século 19 com os atuais consumidores de "O Segredo". Tanto naquele tempo quanto hoje, há uma categoria de céticos que gostariam de acreditar numa mudança possível, mas para quem o lado esotérico da religião não fornece as respostas mais convenientes. Para chegar a eles, alguns autores queriam - e continuam querendo - mostrar que a auto-ajuda pode não ser uma questão de fé, mas sim algo diferente e que pode ser comprovado objetivamente, o que explica parte do ovo de Colombo de Rhonda.

Outro efeito curioso no fenômeno "O Segredo" é o fato de o leitor, seduzido pela embalagem científica da lei da atração, estar levando para casa, sem saber, um discurso mágico. "As ciências sociais fazem uma distinção entre religião e magia", afirma Antônio Pierucci, professor titular de ciências sociais da USP e especialista em sociologia da religião. "Um ato religioso é, por exemplo, fazer uma prece a Deus. Mesmo sem ter grandes garantias de que Ele vá atender, o fiel continua pedindo, numa atitude humilde e de respeito", diz. Mas a magia inverte a relação com o sagrado por meio de um gesto ou de uma palavra mágicos.

E isso tem um apelo tão sedutor quanto divertido para aqueles que acreditam no poder da magia. Afinal, ela enche a realidade de seres e torna o mundo mais interessante. Crédulos ou não, para tornar a vida moderna menos chata precisamos povoá-la com a imaginação. Para isso servem as novelas, os filmes, a música, a poesia. Nesse campo, entram também a magia e a religião. A ciência fica de fora, pois pertence à esfera da técnica. Apesar disso, não tem a pretensão de liquidar o imaginário.

Melhor que liquidar é estudar. Só assim para decifrar a relação entre a magia e o divino. No caso de "O Segredo", ela pode ser explicada usando como exemplo a lenda árabe de "Ali Babá e os 40 Ladrões". Na história, um personagem diz: "Abre-te, Sésamo", e assim faz com que um espírito obedeça ao seu comando e abra uma porta. "Aqui é o mago quem comanda. A magia é um ato de coerção do divino", afirma o professor Pierucci.



Revista Galileu

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Os caminhos e os novos desafios do sindicalismo no Brasil 3

Fatores como a flexibilização das relações de trabalho e as novas formas de gestão provocam o parcial desmantelamento dos sindicatos, que vem buscando novas alternativas de intervenção, negociação e organização para se manterem atuantes


por EVERALDO DA SILVA e MANOEL JOSÉ FONSECA ROCHA


O BRASIL está cada vez mais se inserindo de modo subordinado no regime de acumulação mundial, aumentando a vulnerabilidade externa de sua economia e agravando os problemas sociais. Conseqüentemente, a dinâmica produtiva se realiza por meio da internacionalização da economia. Assim, os trabalhadores estão cada vez mais impossibilitados de fazerem resistência. Os sindicatos não estão conseguindo impedir os movimentos que prejudicam e desarticulam os trabalhadores. A fragilidade social e a dominação do mercado sobre as condições de emprego são alguns dos obstáculos para a prática de resistência dos trabalhadores.


Atualmente, o número de trabalhadores que os sindicatos conseguem juntar nas reuniões é baixo, diferentemente de 15 anos atrás, quando os trabalhadores discutiam os seus interesses em comum, encorajando-os à ação coletiva de resistência. O medo de perder o emprego vem sendo um dos principais fatores que contribuiu para dificultar a organização nos locais de trabalho, sendo que este fenômeno vem aumento brutalmente, dificultando a criação de uma “consciência sindical”.


Com a instabilidade e a fragmentação da classe trabalhadora, o sindicalismo tem novos desafios, principalmente diante de uma base social composta de partes de diferentes naturezas. Os sindicatos do terceiro milênio têm, desde logo, de compreender as profundas modificações ocorridas, quer na organização da produção capitalista, quer na própria estrutura de classes na sociedade. Os sindicatos têm, agora, de se assumir como órgãos de luta política e adotar uma estratégia de ruptura com o atual estado de coisas que, aliás, vem colocando os trabalhadores em níveis, em alguns casos, inferiores àqueles com que se tiveram de bater nos primórdios da Revolução Industrial


POR ESSA RAZÃO, o sindicalismo brasileiro está buscando novas alternativas que, apesar de ainda serem incipientes, evidenciam certo desenvolvimento, como a tentativa de articulação com outros movimentos sociais (terra, moradia, cidadania, justiça, etc.); a busca de abertura efetiva para novos temas e demandas (ambiente, gênero e raça, cidadania dentro e fora dos locais de trabalho, educação do trabalhador – político – sindical, geral e profissional) e a incorporação de práticas alternativas de intervenção, negociação e organização (Câmaras Setoriais/Regionais, políticas públicas e sociais, e articulação no âmbito do Mercosul).

A primeira experiência neoliberal durante o governo de Margareth Thatcher (foto), em 1979, prejudicou os sindicatos ao tirar encargos das empresas e direitos trabalhistas


O processo de produção, na qualidade de um campo de disputa entre capital e trabalho, manifesta inúmeros papéis: de controle, de resistência, de alienação, de constituição de identidade, de conflitos de interesses e de produção do consenso. A importância do processo de trabalho na produção e na reprodução de diferentes e relevantes dimensões das relações sociais, dentro e fora da empresa, de acordo com o que foi exposto, fundamenta a necessidade do envolvimento pró-ativo dos sindicatos.


Os mecanismos de controle, criados não somente pela classe patronal, mas também pelo governo, promovem um crescente e assustador desmantelamento das organizações sindicais. Pela parte do governo, as políticas assistencialistas, como vale-refeição, vale-gás, salário-família, bolsa-escola, etc., isoladamente ou somadas, são, na verdade, instrumentos ocultos que, de forma competente, afastam os trabalhadores de suas entidades representativas. Por outro lado, existem os mecanismos criados pela classe patronal, como as associações dos operários: espaços criados com a finalidade de promover horas de lazer/diversão e não para reflexão dos trabalhadores. Há ainda, o exército de reserva, que concede ao capitalista o direito crescente de remunerar cada vez menos seus trabalhadores.


Levando-se em conta o que foi observado, os sindicatos ainda são fortes instrumentos de luta em defesa dos interesses de seus sindicalizados. No entanto, a sua representatividade dependerá da construção de um sentimento de cidadania, suficientemente forte e que justifique a sua permanência.



REFERÊNCIAS
ANTUNES, R. L. C. O que é sindicalismo. São Paulo: Brasiliense, 1981.CARDOSO, A. M. A década neoliberal e acrise dos sindicatos no Brasil. São Paulo:Boitempo, 2003.KAPSTEIN, E. B. Workers and the worldeconomy. Foreign Affairs, p. 16, maio/jun. 1996.McILROY, J. O inverno do sindicalismo. In:ANTUNES, R. (Org). Neoliberalismo, trabalho e sindicatos: reestruturação produtiva no Brasil e na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 1997.POCHMANN, M. A década dos mitos. SãoPaulo: Contexto, 2001.REGINI, M. Sindicalismo. In: BOBBIO, N.;MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário depolítica. 11. ed. Brasília: Editora Universidadede Brasília, 1998.SANTANA, M. A. O sindicalismo brasileironos anos 1980/2000: do ressurgimentoà reorientação. In: Cadernos Adenauer.Sindicalismo e relações trabalhistas. Rio deJaneiro: Fundação Konrad Adenauer,jul. 2002.SANTANA, M. A.; RAMALHO, J. R. (Orgs.).Além da fábrica: trabalhadores, sindicatose a nova questão social. São Paulo:Boitempo, 2003.



EVERALDO DA SILVA é mestre em Desenvolvimento Regional pela Fundação Universidade Regional de Blumenau, doutorando em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, professor e Gestor Acadêmico do Grupo Uniasselvi da Faculdade Metropolitana de Blumenau e professor do Instituto Catarinense de Pós-Graduação. Possui artigos e livros publicados na área das Ciências Sociais, Sociologia e Metodologia. E-MAIL: evesociologia@gmail.com



MANOEL JOSÉ FONSECA ROCHA é bacharel em Estudos Sociais e História pelo Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Pelotas, mestre em Educação pela Universidade Regional de Blumenau, professor do Instituto Catarinense de Pós-Graduação e Faculdade Metropolitana de Blumenau. Possui artigos publicados em congressos, revistas na área das Ciências Sociais e livros nas áreas de História e Sociologia.
E-MAIL: manoel@furb.br


Revista Sociologia

Os caminhos e os novos desafios do sindicalismo no Brasil 2

Fatores como a flexibilização das relações de trabalho e as novas formas de gestão provocam o parcial desmantelamento dos sindicatos, que vem buscando novas alternativas de intervenção, negociação e organização para se manterem atuantes

por EVERALDO DA SILVA e MANOEL JOSÉ FONSECA ROCHA

Ao contrário da década de 1980, que foi o ápice da organização sindical, a década de 1990 foi marcada por mudanças profundas nas bases da ação sindical, resultando em seu deslocamento do centro da arena política brasileira. Lutando por sobreviver em um ambiente pouco amistoso, as centrais sindicais se mostraram incapazes de oferecer alternativas viáveis às políticas neoliberais que erodiram suas bases de sustentação.

Nessa década, as relações de trabalho experimentaram uma reestruturação industrial profunda. Surgiram novas formas de organização da produção e novas tecnologias informacionais que criaram novas oportunidades, mas também riscos que geraram vencedores e perdedores.


Mecanismos capitalistas foram criados para fragilizar as práticas de resistência dos trabalhadores, assim como as táticas empresariais de poder passaram a incentivar a submissão e a disciplina nos ambientes laborais.


Segundo análise do economista Márcio Pochmann, o desemprego em massa que ocorreu no Brasil deixou quase 600 mil novos desempregados por ano na década de 1990, aumentando o número de trabalhadores que expandiam sua jornada de trabalho devido à insegurança e ao medo de perder o emprego, dificultando ainda mais a possibilidade de resistência nos locais de trabalho.


Num cenário negativo para o mercado de trabalho, o balanço da dinâmica sindical não poderia ser positivo. Uma avaliação feita pela CUT, em 2000, indicava que a ofensiva contra os direitos trabalhistas e os sindicatos impôs também uma pauta defensiva e fragmentada que limitou as tentativas de unificação das lutas e chegou a afetar a própria Campanha de Sindicalização, que apesar de ter aumentado as filiações, não chegou a deslanchar. O percentual de sindicalização na CUT, desde o 6º Congresso Nacional da CUT (Concut), realizado em 1997, caiu de 34,60% para 31,40%. Até março de 1999, a queda vinha sendo acentuada. A partir dessa data, o percentual médio se estabilizou em torno de 31%.


Os sindicatos geram conflitos, mas também canalizam a participação social e política de grandes massas




O avanço tecnológico e o aumento da participação feminina no mercado de trabalho seriam um dos fatores para a crescente redução do emprego no mundo


Outros fatores para o momento de crise enfrentado pelos sindicatos: a “flexibilização” das relações de trabalho e o crescimento do trabalho em tempo parcial, tempo determinado e por conta própria; o uso intensificado da subcontratação, do trabalho em domicílio e o aumento da participação feminina no mercado de trabalho, além do crescimento do desemprego; a redução do emprego industrial provocada pelo avanço tecnológico e pela automação; a possibilidade atual das empresas de deslocamento e segmentação de suas atividades; e, finalmente, o uso de novas formas de gestão que enfatizam a participação dos trabalhadores e desestimulam a sindicalização.


Em suma, a década de 1990 foi um pesadelo para os sindicatos, marcado por um forte sinal de rompimento da “promessa integradora”: a indústria passou a desempregar intensamente, mas os outros setores urbanos não geraram empregos suficientes para acolher os redundantes da reestruturação industrial, simplesmente porque a economia parou de crescer, ou fê-lo a taxas inferiores ao que seria preciso para gerar novos empregos.


O século passado terminou para os sindicatos sob a égide da crise. O novo século iniciou com aumento da terceirização, da informalidade, e um pequeno aumento da capacidade de reivindicação.


Também houve a ênfase na racionalização do trabalho, baseada principalmente na teleinformática, que recria novos alicerces para as condições de domínio do capital sobre o trabalho. Os padrões de organização produtiva atual ajustam as modalidades clássicas de apropriação da mais-valia – absoluta e relativa, intensificando fragmentações e desigualdades no interior da classe trabalhadora, tornando mais difíceis as condições de vida e de trabalho.


Os sindicatos são o alicerce seguro na defesa por melhores condições de trabalho e pela cidadania


Outro ponto é que a política salarial atual é ainda mais determinada pelo mercado, sob a regulamentação neoliberal, que utiliza a “livre negociação”, dissipando, assim, as condições salariais e de trabalho, bem como o papel dos sindicatos.


O GOVERNO BRASILEIRO não deixou por menos. Por meio de sua política, também interferiu nas ações de resistência dos trabalhadores, utilizando-se de aparatos repressivos, debilitando ainda mais as práticas sindicais. Segundo Ethan Kapstein, diretor de estudos do Conselho de Relações Exteriores, a economia global está deixando em seu rastro milhões de trabalhadores insatisfeitos. A rápida mudança tecnológica e o aumento da competição internacional estão pressionando os mercados de trabalho dos principais países industrializados, ao mesmo tempo em que pressões sistêmicas estão reduzindo a capacidade dos governos de responder com novos gastos. No exato momento em que os trabalhadores precisam dos Estados nacionais como uma proteção na economia mundial, eles os estão abandonando.


As modernas formas de contratação e de gerenciamento da força de trabalho criam novas condições extremamente favoráveis para um maior domínio e controle do trabalho pelo capital. Com efeito, como essas formas de organização do processo de trabalho só funcionam se os trabalhadores estiverem dispostos a participar das atividades de grupo e a assumir a responsabilidade pelo seu próprio trabalho, elas são, na verdade, mediações criadas pelo capital para quebrar a resistência da classe trabalhadora e, assim, ganhar a confiança dos trabalhadores.


Os rumos do sindicalismo


Com o final da ditadura militar, no início da década de 1980, o sindicalismo no Brasil ganha força devido a alguns aspectos, entre eles:


Os sindicatos se tornaram um estuário conjuntural de resistência ao regime militar, ocorrendo uma politização dos movimentos;


Devido ao excesso de autoritarismo e exploração da força de trabalho (baixos salários, muita rotatividade e aumento de horas-extras) o sindicalismo foi levado a lutar por mais justiça social e dignidade no trabalho;





Greves estritamente econômicas, como as de 1987 e 1988, consideradas as mais longas na história do País, foram realizadas como forma de protestos políticos contra o governo;





Crescimento da CUT (Central Única dos Trabalhadores), criada em 1983, tinha em 1989 quase 2 mil sindicatos filiados, representando 8 milhões de trabalhadores de todos os setores econômicos.


O medo de perder o emprego dificulta a organização sindical nos locais de trabalho, comprometendo o desenvolvimento de uma “consciência sindical”


Assim, as tentativas de organização sindical ficam muito debilitadas. Nas empresas, há renovação da mão-deobra e formas de pressão e fiscalização mais intensas, dificultando a mobilização. Os trabalhadores estão cada vez mais afastados das lutas sindicais, principalmente devido à intensificação do trabalho, ao medo de perder o emprego e ao preito à ideologia neoliberal.


Os países industrializados registram uma baixa significativa do trabalho industrial (mudança da organização do trabalho e das qualificações, individualização e flexibilização) e um crescimento dos serviços, com o aumento espetacular do desemprego permanente e das exclusões duráveis, reorganização do espaço urbano e desmantelamento parcial das concentrações operárias. Ninguém pode prever o efeito cumulativo por décadas desses fenômenos dentro de sociedades onde os assalariados representam mais de 80% da população ativa.



No Brasil, os avanços na ação sindical ocorreram quando movimentos sociais se articularam para resistir à ditadura


Num quadro crescente de instabilidade financeira mundial, orientada pelas políticas neoliberais, os trabalhadores vivem num intenso processo de exploração nos ambientes de trabalho, dificultando ainda mais a sua capacidade de mobilização.


Os desafios do movimento sindical são muitos perante o crescente processo de subcontratação e terceirização, que são os principais meios de precarização do trabalho nas organizações.




Revista Sociologia

Os caminhos e os novos desafios do sindicalismo no Brasil 1

Fatores como a flexibilização das relações de trabalho e as novas formas de gestão provocam o parcial desmantelamento dos sindicatos, que vem buscando novas alternativas de intervenção, negociação e organização para se manterem atuante

por EVERALDO DA SILVA e MANOEL JOSÉ FONSECA ROCHA

Mercado de trabalho

Em meados do século XVII, a Inglaterra fez a sua Revolução Industrial. A partir desse momento, o mundo sofreu profundas transformações de ordem econômica, política e social. Na ordem econômica, podese destacar a consolidação do capital e, como conseqüência direta desse fato, a nítida separação entre os donos do capital (donos dos meios e modos de produção) e aqueles que vendiam sua força de trabalho em troca de salários.


Na ordem política, é possível destacar a ascensão da burguesia industrial que, juntamente com a burguesia mercantil, deu origem à burguesia financeira. Juntas, as burguesias, de lá para cá, desenharam os rumos da política econômica e social doBrasil e do mundo.


Na ordem social, hoje, de forma ainda mais expressiva, os reflexos são mais facilmente percebidos. Com o advento e introdução das máquinas no processo produtivo, o ser humano ficou submisso, perdendo, quase que totalmente, o domínio das etapas de produção de um bem/mercadoria. Essa realidade levou o trabalhador a depender da máquina e dos donos das máquinas.


De lá para cá, as máquinas se multiplicaram, tanto na sua funcionalidade quanto em sua quantidade, tornando-se as maiores concorrentes dos trabalhadores no mundo do trabalho. Cabem aqui alguns questionamentos: seriam as máquinas as culpadas pelo desemprego? Estaremos caminhando para uma sociedade sem empregos? Qual o futuro das organizações dos trabalhadores numa sociedade onde o emprego caminha para a extinção?





O sindicato deve ser compreendido como numa organização em que a existência e funcionamento estão associados a uma sociedade estruturalmente marcada pelo “assalariamento”, pelo conflito de classes e pelas particularidades da formação social onde está inserido.


O sindicalismo pode ser definido como a “ação coletiva para proteger e melhorar o próprio nível de vida por parte de indivíduos que vendem a sua força-trabalho”. No entanto, é difícil ir além desta definição abstrata e indeterminada, porque o sindicalismo é um fenômeno complexo e contraditório. Ele nasce, de fato, como reação à situação dos trabalhadores na indústria capitalista, mas constitui também uma força transformadora de toda a sociedade. Traduz-se em organizações que, gradualmente, se submetem às regras de uma determinada sociedade, mas são sustentadas por fins que transcendem as próprias organizações e que freqüentemente entram em choque com elas: gera e alimenta o conflito dentro e fora da empresa, mas canaliza a participação social e política de grandes massas, contribuindo para integrá-las à sociedade.


Na verdade, é preciso esclarecer que os sindicatos, ao contrário do senso comum, não são instrumentos que visam, exclusivamente, às melhorias salariais. Caso fossem, as organizações sindicais do professorado brasileiro já estariam extintas há décadas. Notoriamente no século XX, poucas foram as melhorias salariais dos professores de redes públicas de ensino, sendo que os reflexos estão muito presentes nos dias de hoje.


Vale ressaltar que as entidades sindicais possuem o propósito de lutar pela defesa dos interesses de uma categoria profissional que foram contrariados ou, então, pelas reivindicações em termos de melhoria das condições de trabalho, das vantagens previdenciárias, etc. Por outro lado, é preciso tornar claro que os sindicatos, prioritariamente, lutam por bons níveis salariais e impedem que o operário se veja obrigado a aceitar um salário inferior ao mínimo indispensável para o seu sustento e o da sua família.

Ao contrário do que ocorria no século passado, as empresas estão preocupadas em oferecer ambientes de trabalho leves e horários flexíveis aos seus colaboradores. Este seria um dos motivos que desestimulariam a sindicalização dos funcionários


Nesse contexto, os sindicatos são o alicerce seguro onde os trabalhadores podem se organizar para lutarem por melhoria em suas condições de vida, na defesa da sua cidadania.


Os sindicatos surgiram da necessidade dos operários lutarem contra a tirania e a dominação dos capitalistas que são os proprietários dos meios de produção (máquinas, matérias-primas, etc.). Sua emergência foi, na verdade, uma reação coletiva à situação dos trabalhadores da indústria capitalista. Entretanto, sua expressão social vai além da mera resposta às condições adversas. Utilizando-se de recursos políticos variados, comumente fundados no poder de pressão coletiva, a ação sindical não está restrita ao conflito salarial. Ela se estende sobre diferentes campos de conflito, dentre os quais o processo de trabalho.


Os sindicatos sofreram fortes mudanças nos últimos anos, por exemplo, com o forte impacto no sindicalismo mundial. A primeira experiência neoliberal européia ocorrida na Inglaterra no governo de Margareth atcher, em 1979, prejudicou sensivelmente os sindicatos. A nova legislação adotada pelo governo procurava tirar encargos das empresas e direitos trabalhistas, desregulamentando o mercado de trabalho e enfraquecendo os “mecanismos de proteção ao emprego”. Simultaneamente, enfrentava diretamente os sindicatos ao proibir greves, proibir a organização e a autonomia sindical e dificultar a negociação coletiva.


A introdução das máquinas no processo produtivo tornou-as concorrentes dos trabalhadores


Nos últimos anos, porém, uma das causas da crise mundial do sindicalismo, que teve início a partir da década de 1980, foi o avanço exacerbado do capitalismo neoliberal, com a reestruturação industrial, que levou a transições no mercado de trabalho e a mudanças ideológicas no ambiente nos quais atuam os sindicatos. Sem contar o enfraquecimento dos Estados-Nação e de sua habilidade para sustentar serviços de bem-estar, à causa da globalização.


NO BRASIL, ao contrário, a partir da década de 1980, ocorreram avanços na ação sindical, quando movimentos sociais passaram a se reorganizar e articular com o intuito de resistir ao domínio político da ditadura burguesa, ocorrido após o golpe militar de 1964. Nesse quadro, o sindicalismo, no final dos anos 1970, reaparece na cena política do País, lutando contra as políticas de arrocho salarial e exigindo maior capacidade de organização e liberdade. No período de 1978 a 1986, os professores, funcionários públicos, médicos, bancários, etc. foram responsáveis por 1.352 das 3.264 greves realizadas. Por outro lado, os trabalhadores da indústria respondiam por 1.604 greves. Na entrada da década de 1980, o País ia deixando para trás longos anos de ditadura militar (1964-1985). As forças atuantes no movimento dos trabalhadores se reorganizaram e rapidamente fundaram centrais sindicais que passariam a coordenar nacionalmente as ações dos trabalhadores.


Com a vitória eleitoral de Fernando Collor de Mello, em 1989, o País incorporaria uma agenda de ajustes econômicos que traria em seu bojo a abertura comercial e as privatizações. A isso se agregaria a estabilidade econômica trazida pelo Plano Real, pedra de toque dos dois governos de Fernando Henrique Cardoso (1994/1998 – 1998/2002). É a partir dos anos 1990, portanto, década marcada por determinações do FMI e do Banco Mundial no Brasil e nos países da América Latina, que ocorre a crise do sindicalismo brasileiro.




Revista Sociologia

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

O Brasil de Euclides da Cunha

Lilian de Lucca Torres


Em Os Sertões, Euclides da Cunha descreve a passagem de seus personagens sertanejos por momentos históricos do Brasil, como a Guerra de Canudos, na Bahia (foto), onde esteve presente visualizando o massacre, como correspondente de jornal

Neste ano completa-se o centenário de morte de Euclides da Cunha (1866-1909), um dos mais importantes autores nacionais. Euclides viveu e produziu em um momento em que as ideias deterministas ainda manifestavam seu vigor como base explicativa para a realidade brasileira. No livro que o consagrou como um dos maiores intérpretes do Brasil, Os sertões (1902), pode ser encontrado, para além da análise da Guerra de Canudos, um estudo sobre a formação do povo brasileiro e a diversidade geográfico-climática do País. A obra, dividida em "A Terra", "O Homem" e "A Luta", foi organizada de acordo com a hierarquia das ciências aceita na época: partindo da noção de que os fundamentos de toda realidade repousam sobre a "matéria", o relato inicial baseia-se nas ciências inorgânicas (Geografia, Geologia), passando depois para as orgânicas (Biologia) e, por fim, para as ciências sociais (História, Sociologia). Obedecendo esta sequência, Euclides começa pelo estudo da infraestrutura geológica, das variações do clima e do sistema fluvial, para estender-se à flora e, por último, tratar do homem e das injunções históricas.


Por meio dos vetores "meio", "raça" e "história", Euclides irá interpretar os conflitos entre o que considerava a área "civilizada", ou seja, o litoral, e o interior do País, resguardado por um isolamento geográfico e histórico que o teria mantido vinculado ao passado. Segundo Euclides, a civilização avançaria sobre os sertões, impelida pela implacável "força motriz da História", as raças fortes esmagando as fracas (Cunha, 2003, p. 9). Percebe-se, em sua análise, a confluência de explicações históricas e raciais, sobrevivendo os mais aptos em todos os terrenos, em uma clara alusão ao darwinismo social.


Um repórter na guerra


Enviado ao cenário da guerra de Canudos (que durou de novembro de 1896 a outubro de 1897) como correspondente do jornal O Estado de São Paulo, Euclides da Cunha, por ser militar e, ademais, comungar com a visão oficial que tratava os sertanejos como revoltosos antirrepublicanos, silenciou sobre as atrocidades do massacre. Revê esta posição durante os cinco anos que leva escrevendo Os sertões. Reconhece um elemento de messianismo na reação dos sertanejos e condena o exército pelos excessos cometidos.


Euclides esforça-se para compreender como o sertanejo, um mestiço, teoricamente portador de desequilíbrios típicos do cruzamento de raças (um "degenerado", segundo as teorias deterministas), resistiu a tantas investidas do exército republicano (quatro batalhas), só sendo derrotado diante do poderio das armas de fogo empregadas pela última expedição. Os combatentes de Canudos pareciam rebelar-se até mesmo como objetos de estudo, para contradizer, em relação ao pensamento de Euclides, as teses do determinismo racial.



A foto mostra os sobreviventes da Guerra de Canudos. Em sua obra, Euclides trata os sertanejos - personagens ativos durante a guerra - como "a rocha viva da nação", um povo que tinha esperança de exercer um papel importante no futuro do Brasil

Ao longo do livro, Euclides alterna a visão do sertanejo como uma sub-raça "instável", "efêmera", "retardatária" e "próxima da extinção" para "a rocha viva da nação". Se o sertanejo corria o risco de desaparecer diante da competição com os imigrantes estrangeiros, era, de maneira contraditória, "antes de tudo um forte". Neto de bandeirante paulista (Cunha, 2003, p. 104), trazendo em si a bravura do índio e a autonomia do branco português, quase sem mescla de sangue africano (p. 105), vencendo o meio inóspito marcado pela seca e pela caatinga, e, principalmente, sendo aquele que teve tempo de fortalecer-se fisicamente enquanto aguardava o desenvolvimento moral e civilizacional posterior da região (p. 117), o sertanejo era "retrógrado", mas não "degenerado" (p. 117). Euclides representa o sertanejo como estando em "compasso de espera", preparando-se para exercer um papel importante no futuro da nação.

Por outro lado, os soldados que lutaram em Canudos, em grande proporção mulatos vindos principalmente do Rio de Janeiro e da Bahia, que, ao final da guerra, degolaram barbaramente todos os prisioneiros, mesmo vivendo em contato com a "civilização", na opinião de Euclides não seriam seus legítimos representantes. Ao contrário, assemelhavam-se a seres incapazes de fazer frente à complexidade da vida urbana em termos de suas exigências intelectuais e morais. Quem não se lembra da famosa frase do livro Os sertões, em que Euclides refere-se aos mulatos apontando "o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral"? À fraqueza física somava uma "doença dos nervos": a neurastenia.

Sertanejos e mulatos



Euclides da Cunha estudou na Escola Politécnica e foi aluno de Benjamin Constant na Escola Militar da Praia Vermelha. Contudo, era infeliz em suas atividades militares e partiu para o campo da literatura

No contraste entre sertanejos e mulatos, embora ambos fossem mestiços, Euclides elogia os primeiros e desqualifica os segundos. O fator racial considerado "inferior" do sertanejo, o índio, não era de todo desprestigiado por Euclides, que acreditava estar diante de uma raça autóctone - o homo americanus - surgida, portanto, na América, de forma desvinculada do Velho Mundo, com um desenvolvimento autônomo. Dono de coragem e resistência física, o índio teria vencido o meio e criado um modo de vida vigoroso. Já o fator racial visto como "inferior" do mulato, o negro, era, para Euclides, irrecuperável: era o homo afer, "filho das paragens adustas e bárbaras, onde a seleção natural (...) se faz pelo uso intensivo da ferocidade e da força" (Cunha, 2003, p. 73).

Euclides foi um homem insatisfeito em relação às suas atividades profissionais. Militar e engenheiro de formação, sempre aspirou ser um escritor reconhecido. Depois da publicação de Os sertões, tornou-se membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e foi eleito, também, para a Academia Brasileira de Letras. Propôs "uma guerra dos cem anos" para combater a seca no nordeste, com a construção de açudes, poços artesianos, estradas de ferro e o desvio do Rio São Francisco para irrigar as áreas mais atingidas pela estiagem. Tornou público seu interesse pela Amazônia ao publicar, em 1904, no jornal O Estado de São Paulo, artigos sobre os conflitos entre Peru, Bolívia e Brasil, que via como uma disputa pelo acesso ao oceano Atlântico. A morte prematura, aos 43 anos, por assassinato, aproximou sua história pessoal da tragédia grega que tanto admirou em vida.

REFERÊNCIAS

BOSI, Alfredo. "Canudos não se rendeu". In: BOSI, Alfredo. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 209-220.

CUNHA, Euclides. Os sertões. Rio de Janeiro: Record, 2003.

VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

_________________. Retrato interrompido da vida de Euclides da Cunha: esboço biográfico. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

LILIAN DE LUCCA TORRES é mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo e atualmente leciona na Faculdade de Comunicação & Marketing da FAAP. É pesquisadora do Núcleo de Antropologia Urbana da USP e editora da Revista Ponto.Urbe do mesmo núcleo.


Revista Leituras da História

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Dicionário Filosófco de Voltaire 2

Tolerância - Seção II

Este é um espaço para publicação de trechos de textos e obras flosófcas sobre temas diversificados


Possuo uma dignidade e um poder que a ignorância e a credulidade criaram; caminho sobre as cabeças dos homens que séculos de fanatismo tornaram poderosos. Eles têm outros poderosos sob o jugo deles e estes têm outros ainda, e todos se enriquecem com os despojos do pobre, se engordam com seu sangue e riem da imbecilidade dele. Todos eles detestam a tolerância, como homens que enriqueceram às custas do público têm medo de prestar contas e como tiranos receiam a palavra liberdade. Finalmente, contrataram a soldo fanáticos que gritaram em alta voz: " Respeitem os absurdos de meu senhor, tremam, paguem e calem-se."

Foi assim que se agiu durante muito tempo em grande parte da terra; mas hoje, que tantas seitas disputam o poder, que partido tomar? Toda seita, como se sabe, é um sinal de erro; não há seita de geômetras, de algebristas, de matemáticos, porque todas as proposições de geometria, de álgebra e de matemática são verdadeiras. Em todas as outras ciências, podemos nos enganar. Qual teólogo tomista ou escotista ousaria dizer com convicção que está absolutamente certo daquilo que afrma? Se há uma seita que relembra os tempos dos primeiros cristãos é, sem sombra de dúvida, a dos quacres. Nada se assemelha mais aos apóstolos. Estes recebiam o espírito, e os quacres recebem o espírito. Os apóstolos e os discípulos falavam em três ou quatro ao mesmo tempo na assembleia do terceiro andar, os quacres fazem outro tanto no térreo. Era permitido, segundo São Paulo, às mulheres pregar e, segundo o mesmo São Paulo, era-lhes também proibido; as mulheres quacres pregam em virtude da primeira permissão.

"De todas as religiões, a cristã é, sem dúvida, aquela que mais deve inspirar tolerância, embora até hoje os cristãos tenham sido os mais intolerantesde todos os homens"

Os apóstolos e os discípulos juravam com um sim ou com um não; os quacres não juram de outra forma. Nada de altos dignitários, nada de aparência diferente entre os discípulos e os apóstolos; os quakers usam mangas sem botões e todos vestem da mesma maneira.Jesus Cristo não batizou nenhum de seus apóstolos; os quacres não são batizados.

Seria fácil levar adiante esses paralelos; seria mais fácil ainda mostrar como a religião cristã de hoje difere daquela que Jesus praticou. Jesus era judeu e nós não somos judeus. Jesus se abstinha da carne de porco porque o animal é impuro e da lebre porque rumina e não tem a pata fendida; nós comemos ousadamente carne de porco, porque para nós não é impuro e comemos carne de lebre que tem a pata fendida e não rumina.

Jesus era circuncidado e nós conservamos nosso prepúcio. Jesus comia cordeiro pascal com ervas amargas, celebrava a festa dos tabernáculos e nós não fazemos nada disso. Ele observava o sábado e nós o trocamos; ele oferecia sacrifícios e nós não.


Revista Filosofia

Dicionário Filosófco de Voltaire 1

Tolerância - Seção II

Este é um espaço para publicação de trechos de textos e obras flosófcas sobre temas diversifcados



A ressurreição de Cristo, obra de Raffaello Sanzio (1500)

De todas as religiões, a cristã é, sem dúvida, aquela que mais deve inspirar tolerância, embora até hoje os cristãos tenham sido os mais intolerantes de todos os homens. Jesus, dignando-se nascer na pobreza e na humildade, assim como seus irmãos, nunca se dignou a praticar a arte de escrever. Os judeus tinham uma lei escrita com os maiores detalhes e nós não temos uma única linha escrita por Jesus. Os apóstolos se dividiram a respeito de diversos pontos. São Pedro e São Barnabé comiam carnes proibidas com os Dicionário Filosófco de Voltaire Tolerância - Seção II novos cristãos estrangeiros e se abstinham delas com os cristãos judeus. São Paulo lhes recriminava essa conduta, mas esse mesmo Paulo, fariseu, discípulo do fariseu Gamaliel, esse mesmo Paulo que havia perseguido os cristãos com furor e que, tendo rompido com Gamaliel, ele próprio se fez cristão, em seguida dirigiu-se, no entanto, a Jerusalém, para oferecer sacrifícios no templo, no período de seu apostolado. Observou publicamente, durante oito dias, as cerimônias da lei judaica, á qual havia renunciado; acrescentou até devoções e purifcações que as havia em abundância; agiu inteiramente como judeu. O maior apóstolo dos cristãos fez durante oito dias as mesmas coisas pelas quais os homens são condenados à fogueira em grande parte dos povos cristãos.

Teudas, Judas, se haviam arvorado em Messias antes de Jesus. Dositeu, Simão, Menandro, se apresentaram como Messias depois de Jesus. Houve, desde o primeiro século da Igreja, aproximadamente vinte seitas Judeia.

Os gnósticos contemplativos, os seguidores de Dositeu, os partidários de Cerinto existiam antes que os discípulos de Jesus tivessem assumido o nome de cristãos. Logo houve trinta Evangelhos, pertencendo cada um deles a uma sociedade diferente; e desde o fnal do século I, podemos contar trinta seitas de cristãos na Ásia Menor, na Síria, em Alexandria e mesmo em Roma.

Todas essas seitas, menosprezadas pelo governo romano e escondidas em sua obscuridade, se perseguiam, no entanto, umas às outras nos subterrâneos, onde rastejavam, isto é, proferiam sua abjeção; quase todas elas eram compostas unicamente do segmento mais desprezível da sociedade.

Quando, finalmente, alguns cristãos abraçaram os dogmas de Platão e misturaram um pouco de Filosofa à sua religião, que separaram da judaica, tornaram-se imperceptivelmente mais respeitados, mas sempre divididos em várias seitas, sem que nunca tenha havido um só momento em que a Igreja cristã estivesse unida. Surgiu no meio das divisões dos judeus, dos samaritanos, dos fariseus, dos saduceus, dos essênios, dos judaítas, dos discípulos de João, dos terapeutas. Esteve dividida em seu berço, esteve também nas próprias perseguições que sofreu sob os primeiros imperadores.

Muitas vezes o mártir era considerado como uma apóstata por seus irmãos e o cristão carpocratiano expirava sob a espada dos carrascos romanos, excomungado pelo cristão ebionita, o qual era anatematizado pelo adepto de Sabélio.

Essa horrível discórdia, que já dura há tantos séculos, é uma lição realmente marcante de que devemos perdoar mutuamente nossos erros; a discórdia é o grande mal do gênero humano e a tolerância é seu único remédio.

Não há ninguém que discorde dessa verdade, seja que medite calmamente em seu recinto particular, seja que examine pacifcamente a verdade com seus amigos. Por que, pois, os mesmo homens que admitem em particular a indulgência, a benevolência, a justiça, se levantam em público com tanto furor contra essas virtudes? Por quê? È que seu interesse é seu deus, é porque sacrifcam tudo a esse monstro que adoram.
Revista Filosofia

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Camus: um grito de esperança silencioso 2

Com seu ensaio O Mito de Sísifo, que caminha entre a Filosofia e a Literatura, Camus tenta explicar o absurdo e o suicídioPor

Paulo Roberto Pedrozo Rocha

Tem-se a noção de absurdo quando o homem, confrontado pelo non-sense da própria existência, põe em questão o ato de viver



Édipo, personagem da tragédia de Sófocles, é um exemplo de que o homem é limitado, precisa viver até o fim para julgar seu destino, já que o sentimento do absurdo pode nascer da felicidade


É preciso mais uma vez lembrar o contexto no qual Camus estava inserido. Este contexto histórico ansiava por respostas. Camus fazia questão de não tê-las e desfazer dos pretensos senhores da razão. Camus conheceu o filósofo Jean-Paul Sartre durante a Segunda Guerra Mundial, fato este que iria marcar seu pensamento e a relação de sua obra com a Filosofia.

O início desta amizade entre Camus e Sartre só não é mais importante do que o seu final. Divididos pela diferença no posicionamento político de sua época e porque viam na Arte - de um modo geral -, e na Literatura - de uma maneira particular - finalidades diversas, os amigos se separaram em um dos poucos casos em que o fim de uma amizade ocupou as páginas dos jornais seculares. Contudo, Camus não oferece respostas.

O próprio fim da amizade forçou as pessoas a escolher entre o rígido realismo dialético de Sartre e a recusa quase niilista proposta por Camus. O pano de fundo era a adesão ou não ao comunismo do tipo soviético como resposta aos anseios e à sensação de vazio trazidos pela Segunda Guerra.

No realismo sartreano, havia uma saída: a prevalência dos operários, ainda que intelectualizados. Em Camus, um ponto de interrogação preenchia os espaços ocupados pela certeza comunista. Neste sentido, Camus assinalava: "...o método aqui definido confessa a sensação de que todo conhecimento verdadeiro é impossível. Só se pode enumerar as aparências e apresentar o ambiente."

"Há dentro de nós a exigência absoluta de sermos eternos e a certeza de o não sermos. O absurdo é a centelha do contato destes dois opostos" VERGÍLIO FERREIRA

NOÇÃO DE ABSUDO



No entanto, uma questão se impõe: o que é exatamente esta noção de absurdo tão instigante na natureza humana e tão incômoda para Camus? Primeiro é preciso uma distinção fundamental. O sentimento do absurdo não é o mesmo que a noção de absurdo. Isso porquê, em toda parte, experimentamos o sentimento do absurdo. Uma simples revolta com as condições do cotidiano, uma tristeza repentina, causada pelo reencontro de alguém que muito nos marcou no passado e agora está ausente. Enfim, o sentimento do absurdo pertence, por assim dizer, ao vulgo.


Há pontos em que Filosofia e Literatura se esbarram. Camus faz isso, assim como Choderlos de Laclos, que no romance Ligações Perigosas retrata a antessala da Revolução Francesa sob a ótica iluminista das relações de classe e poder

Já a noção de absurdo é um passo a mais. Sua definição ontológica - para usar uma terminação aristotélica evocada por Camus em O Mito de Sísifo - se propõe pelas consequências advindas da sensação do absurdo. É quando o homem, confrontado pelo non-sense da própria existência, coloca em questão se o ato de viver é digno de sua natureza.

A partir daí, Camus acentua o caráter cáustico de sua análise. Para ele, "se fosse preciso escrever a única história significativa do pensamento humano, deveria ser a de seus arrependimentos sucessivos e de suas impotências" (Camus, 2004:32). Surge, enfim, o romancista trágico - uso o termo trágico no registro da tragédia como gênero literário e não pela comum adjetivação a que estamos habituados - capaz de ver a nulidade dos esforços humanos tentando dar sentido a uma existência que em si, por definição, é desprovida dos sentidos.

Afinal, Sísifo está sempre na base da montanha, sua alegria consiste nisso. Se a obra de Camus fosse uma composição musical talvez pudéssemos caracterizá-la como um réquiem. Sem dúvida um réquiem como Mozart uma vez propôs. Como se sabe, os réquiens eram compostos para o funeral de alguém. Mozart o fez sob encomenda a um rico comerciante, mas na verdade era na sua própria morte que pensava.


Imagens da Segunda Guerra Mundial. Camus escreveu, durante o auge do existencialismo, que pregava uma Literatura engajada por influência da proximidade dos horrores da Segunda Guerra Mundial, mas não seguiu esta corrente

Nesta perspectiva, O Mito de Sísifo pode se referir à morte das esperanças de Camus em fatos tão ilustrativos como significativos da história francesa da metade do século XX. Muitas tinham sido as esperanças depositadas no Partido Comunista do pósguerra.

A própria Resistência - que para muitos historiadores foi mais romanceada pelos franceses do que seria capaz de atestar a realidade - havia proposto isso. No final, as atrocidades do regime soviético, suas alianças primeiras com Hitler e seus métodos similares a todo regime totalitário central, acabaram por apagar a chama de esperança acesa pelo comunismo. Camus estava entre aqueles que sopraram, ou viram soprar, a chama desta esperança.


Sísifo era portador de uma certeza que poderíamos chamar de "alegre": ele é dono de seu destino


Mas há uma alegria a ser notada. Sísifo, o mito grego condenado ao eterno trabalho de rolar a pedra de sua condenação morro acima e depois buscá-la ladeira abaixo, era portador de uma certeza que poderíamos chamar de "alegre" caso esta palavra não ofenda o espírito da obra: ele é dono de seu destino. Não deve seu futuro aos deuses. Seu futuro é o mesmo que seu passado. Se confunde com o presente:


"Toda a alegria silenciosa de Sísifo consiste nisso. Seu destino lhe pertence. A rocha é a sua casa. Da mesma forma, o homem absurdo manda todos os ídolos se calarem quando contempla seu tormento...se há um destino pessoal, não há um destino superior ou ao menos só há um, que ele julga fatal e desprezível. De resto, sabe que é dono de seus dias." Libertar-se de seus ídolos. Essa talvez fosse a consequência positiva da noção de absurdo. Na verdade, Camus apresenta Sísifo como um herói do absurdo.

O desprezo que este alimenta pelos deuses, seu ódio à morte e sua paixão pela vida fizeram com que ele fosse supliciado ao castigo eterno. Mas não importa: sua resistência abriu o caminho a uma felicidade diferente. Camus observa: "A felicidade e o absurdo são dois filhos da mesma terra. São inseparáveis. O erro seria dizer que a felicidade nasce necessariamente da descoberta absurda. Às vezes ocorre também que o sentimento do absurdo nasce da felicidade. 'Creio que está tudo bem', diz Édipo, e esta frase é maldita. Ressoa no universo feroz e limitado do homem e ensina que nem tudo foi experimentado até o fim. Ela expulsa deste mundo um deus que havia entrado nele com a insatisfação e o gosto pelas dores inúteis. Faz do destino um assunto humano, que deve ser acertado entre os homens."


O Suicídio de Lucrecia, de Jörg Breu, o Velho. Para Camus, decidir se a vida vale ou não a pena de ser vivida é a grande questão da Filosofia

Para silenciar as reflexões aqui contidas - o silêncio é para Camus o sinal de que o absurdo se instaura - uma vez que concluí-las seria demasiado pretensioso, seguimos o exemplo de Camus e evocamos, com a eloquência da tragédia grega, nascedouro do romance moderno, as palavras do Corifeu que na peça de Sófocles, Édipo Rei, talvez apresente a melhor síntese do que se quis ou não quis dizer sobre o tênue fio que liga a Filosofia com a Literatura: "Habitantes de Tebas, minha Pátria! Vede este Édipo, que decifrou os famosos enigmas! Deste homem, tão poderoso, quem não sentirá inveja?

No entanto, em que torrente de desgraças se precipitou! Assim, não consideremos feliz nenhum ser humano, enquanto ele não tiver atingido, sem sofrer os golpes da fatalidade, o termo de sua vida." (Sófocles, Édipo Rei) O grito de esperança é silencioso. O que atrita o homem comum, se torna natural. A busca continua a mesma... tudo parece voltar ao princípio pois "só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da Filosofia"


Albert Camus (1913-1960), escritor e filósofo. A possibilidade cotidiana de morrer permeia sua obra filosóficoliterária, que tem o absurdo como marca


Revista Filosofia

Camus: um grito de esperança silencioso 1

Com seu ensaio O Mito de Sísifo, que caminha entre a Filosofia e a Literatura, Camus tenta explicar o absurdo e o suicídio

Por Paulo Roberto Pedrozo Rocha




O Grito, de Edvard Munch (1893). Obra expressionista que evoca desespero existencial. Dor e angústia também são algumas das interpretações a respeito do quadro

Paulo Roberto Pedrozo Rocha é mestre e doutor em Filosofia pela USP. Atualmente cumpre estágio de pós-doutorado na PUC-SP e é professor dos cursos de graduação, Letras, Tradutor Intérprete e Ciências Sociais da Universidade Nove de Julho - Uninove

"Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da Filosofia." Com essas palavras, o franco-argelino Albert Camus (1913-1960) abre seu ensaio intitulado O Mito de Sísifo, quem sabe uma das obras mais significativas situada no tênue fio que separa a Filosofia da Literatura entre os europeus da metade do século passado.

O leitor da Filosofia irá recorrer em primeiro plano aos escritos dos iluministas franceses tais como Jean-Jacques Rousseau (embora este, tão frequentemente tratado como francês era, na verdade, suíço de nascimento) com o seu Júlia ou a Nova Heloísa ou até mesmo Voltaire (este sim um verdadeiro "Barão" francês) em contos como o Ingênuo, ou o clássico Ligações Perigosas de Choderlos de Laclos que, escrito em 1782 retrata a antessala da Revolução Francesa, revelando de forma, ora divertida, ora irônica, um tratado de Filosofia Política no que se refere ao pensamento iluminista sobre as relações de classe e poder, temas tão caros aos filósofos de todos os tempos.

Camus é um romancista. Nesta condição, ele vive um dilema com a corrente existencialista tão em voga na metade do século XX. Para os existencialistas, dentre os quais se destaca Jean-Paul Sartre (1905-1980), a Literatura precisa ser engajada e não poderia mais ser vista como mera forma de entretenimento. Através dela era preciso dizer que o literato é antes de tudo um inconformado. Vale lembrar que boa parte dos existencialistas de então havia vivido a experiência da Segunda Guerra Mundial e no seu término estavam entre a indignação trazida pelos horrores da guerra e a esperança prefigurada pelo socialismo soviético1.


1 Para saber mais sobre esse assunto ver O que é Literatura, Jean-Paul Sartre, Ed. Ática, 1993.




Sísifo, por Max Klinger (1914). No mito grego, Sísifo é condenado a eternamente rolar uma pedra morro acima e buscá-la morro abaixo. Exemplo de paixão à vida, mesmo no absurdo da falta de sentido

Contudo, será num ensaio (e é importante lembrar que o ensaio é mais do que uma mera variação dos tratados filosóficos), e não em um romance que Camus irá elaborar o que poderíamos chamar de "DNA" do novo romance filosófico. O Mito de Sísifo se impõe como um instrumento de reflexão representando um gênero literário - o dos ensaios - consagrado na Literatura francesa desde Michel de Montaigne no século XVI.

O Mito de Sísifo é um livro de 1942. Nesta época, Camus já se distanciava gradativamente do existencialismo, corrente à qual, em sua opinião, ele nunca pertenceu. Para ele, não havia sentido exigir da Literatura uma posição sempre militante.

Esse comportamento sugeria a Camus uma espécie de mascaramento da realidade, pois ele via uma explícita intenção por parte dos pares do existencialismo em defender as atrocidades cometidas pelo regime soviético. Para Camus, a obrigatoriedade do engajamento implicaria, necessariamente, em um desvirtuar da tarefa principal da Literatura: revelar a alma humana.
Daí as primeiras impressões colhidas em O Mito de Sísifo: "Começar a pensar é começar a ser atormentado... matar-se, em certo sentido, e como no melodrama, é confessar. Confessar que fomos superados pela vida ou que não a entendemos." Ao invés de uma confissão militante, se impõe uma decepção, um gesto que implica no desapontar-se com o mundo, o que poderia ser denominado noção do absurdo.

Ao propor a noção de absurdo, Camus passa quase que inexoravelmente a expor o tema de seu ensaio, que era "essa relação entre o absurdo e o suicídio, a medida exata em que o suicídio é uma solução para o absurdo." A princípio, os leitores de Camus poderiam supor que de sua escrita iria advir uma solução para a noção de absurdo. Ainda que esta solução fosse limite, ainda que constatasse que a vida não valeria a pena. Esta expectativa, na verdade, é frustrada.


ABSURDO: TEMÁTICA RECORRENTE ENTRE OS FILÓSOFOS


Albert camus não foi o primeiro a refletir sobre o absurdo. outros filósofos também lidam com esse tema. ele está presente nas teorias de Soren Kierkegaard, Léon Schestow, Karl Jaspers, Martin Heidegger, edmund Husserl e, mais próximos a camus, de Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty. Para Heidegger, por exemplo, o existir é o absurdo e a Filosofia deve fazer o homem se dar conta disso. absurdo porque o "ser", lançado no tempo, e que nunca "é", depara-se com o "nada", e vive a angústia.

Mas Heidegger defende que essa percepção faz o homem se deparar com sua finitude e valorizar seus potenciais. Já Sartre, filósofo existencialista, associa o absurdo à "náusea" de estar vivo. a "náusea" adviria do fato de o homem não poder ser senão o "não-ser" e, "não-sendo", nunca poder se deparar com o nada. Karl Jaspers segue outra linha. ele acredita que a certeza existencial passa pela fé. ele defende uma fé filosófica. Só ela faria o homem entender o absurdo da vida.




Revista Filosofia

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Futebol desafiou princípios do governo de Getúlio Vargas

Pesquisa mostra que o futebol brasileiro conseguiu, em parte, se contrapor aos ideais do estado varguista

Agência USP

O futebol brasileiro, de estilo individualista e exibicionista, não se curvou à tentativa do governo de Getúlio Vargas em usá-lo como instrumento político. A historiadora Melina Pardini lembra que, apesar de o Estado Novo - período de 1937 a 1945, em que Vargas impôs um governo autoritário - tentar concretizar o seu projeto de construir uma nação ordenada e disciplinada com o futebol, havia muitos aspectos do esporte que afrontavam esse plano.

No estudo de mestrado A Narrativa da Ordem e a Voz da Multidão: Futebol na Imprensa durante o Estado Novo, apresentado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Melina relata que, para o governo da época passar sua ideologia através do futebol, utilizava alguns métodos bem eficazes. Um deles era pelo controle da mídia: "Nessa empreitada de moldar o futebol de acordo com os princípios estadonovistas, os jornais também representavam a massa torcedora como um conjunto harmônico, sem conflitos e individualismos."

Estilo libertário
De acordo com a pesquisadora, no Estado Novo havia outra concepção, outro estilo: um futebol ordenado, disciplinado e coletivo. "Houve um esforço para consolidar o futebol como esporte nacional e instrumento político, já que isso poderia ajudar a concretizar o projeto de construir uma nação ordenada e disciplinada", conta. "Mas existe um estilo brasileiro de jogar, individualista e que preza a malemolência, a malandragem. Um estilo libertário e individualista."

E esse estilo libertário que se sobrepôs ao estilo disciplinado ficou mais evidenciado por Leônidas da Silva, também conhecido como Diamante Negro. "O craque do momento era um negro, que era malandro e com um jogo totalmente individualista. Essas características de Leônidas minavam três valores do Estado Novo: a superioridade do homem branco, a disciplina e a coletividade."

A historiadora destaca que Leônidas conseguia passar uma imagem oposta da que o governo getulista queria. Além de ser um grande craque, ele era idolatrado pela população, principalmente a de baixa renda. O governo até tentava, pelo controle da imprensa, alterar a imagem do jogador, como ao afirmar que ele era um "mestiço a serviço da nação", mas a população "valorizava o lado descompromissado e brincalhão dele."

O estudo, que foi orientado pelo professor Flávio de Campos, do Departamento de História da FFLCH, aponta ainda outros artifícios de controle do Estado Novo. Ela cita a propaganda política de Vargas com a inauguração estádio do Pacaembu, em 1940, na qual a imagem do presidente era diretamente relacionada com a com a construção do estádio. Outro artifício marcante do Estado Novo foi com a copa de 1938. De acordo com a pesquisa, foi a primeira vez que o País teve de fato uma seleção nacional, visto que antes praticamente só escalavam jogadores do Rio de Janeiro. Devido à "preocupação com a unidade nacional", diz a historiadora. "O governo propiciou a criação de uma seleção com os melhores jogadores para promover o futebol brasileiro no exterior."

Resistência
Apesar dos esforços do governo, a própria população brasileira indiretamente se manifestava contra a ideologia deste pelo esporte. A valorização do estilo individualista foi uma dessas marcas. Melina também destaca a disputa regional que havia na época entre o Rio de Janeiro e São Paulo.

Segundo a pesquisadora, a rivalidade entre os estados para decidir quem era melhor no futebol era tão grande que até os jornais na época trocavam ofensas quando havia jogo entre um time do Rio e outro de São Paulo. "Essa rivalidade acabava prejudicando a idéia de união nacional do Estado Novo", diz Melina.

A pesquisa teve como base de documentação três jornais de grande circulação, um de São Paulo (Correio Paulistano) e dois do Rio de Janeiro (Gazeta de Notícias, de 1937 a 1941, e Jornal do Comércio, de 1942 a 1945), mais dois jornais esportivos, também um de São Paulo e um do Rio (respectivamente, Gazeta Esportiva e Jornal do Esporte). Melina analisou todas as publicações desses jornais da época estudada.


Revista Filosofia

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

sonho e projeção lúcida

A projeção lúcida é o fenômeno em que o centro da consciência deixa o corpo físico. Com grande freqüência ela é confundida com o sonho

Por Eduardo Juliani




Sair do corpo físico durante o sono - fenômeno a que se dá o nome de pro- jeção lúcida - é um atributo inerente ao ser humano.De modo espontâneo ou induzido, todos podem experimentar tal situação. A pergunta que se faz é: "Por que não somos todos projetores lúcidos já que a projetabilidade é atributo de todos nós?" De- terminadas habilidades, como andar de bici- cleta ou fazer cálculos, requerem tempo, es- forço e dedicação no seu desenvolvimento. A projeção lúcida é uma delas.

Nossa formatação mental, que nos faz confundir o que somos com quem somos, leva-nos à falácia de sermos somente o nos- so corpo e suas possibilidades. A formação cultural, fortemente influenciada pela mídia e pelo consumo, nos induz ainda mais a de- dicarmos excessiva atenção ao corpo físico. Para estudar-se a projetabilidade é necessário entender variáveis como o conhecimento e o entendimento dos vários corpos (holossoma) coexistindo encaixados entre si, cada qual em uma dimensão energética própria.

É necessá- rio entender também o binômio lucidez-reme- moração. Embora todas as pessoas, sem exce- ção, deixem seus corpos todas as noites, não é raro que permaneçam dormindo fora dele. A maioria, por permanecer dormindo não apresenta lucidez e, portanto, não rememora as experiências extrafísicas. Em outro extremo estão as projeções com lucidez perfeitamente rememoradas. Nessa situação, o fenômeno projetivo é autocomprobatório. Entre os dois extremos encontramos fenômenos com vários níveis de lucidez-rememoração, o que em par- te explica as confusões entre sonho e projeção. Muitos, quando se recordam de algum evento ocorrido entre o sono e a vigília, dão a tais eventos o rótulo de sonho.

"Embora as pessoas deixem seus corpos todas as noites, não é raro que permaneçam dormindo fora dele"

Entre sonho e projeção

Na projeção a pessoa percebe-se lúcida, consciente, e em uso dos seus atributos mais im- portantes (atenção, memória, raciocínio, juízo crítico, discernimento, capacidade de associa- ção de ideias, livre arbítrio), mesmo estando fora do corpo humano. O sonho é um estado alterado da consciência caracterizado pela sequência de fenômenos psíqui- cos, imagens, representações, atos, ideias, emoções, que involuntariamente ocorrem durante o sono. Apresenta-se como conjunto de sensações ou re- presentações mais ou menos realistas que surgem sem o controle do indivíduo e que, na maioria das vezes, tem um caráter bizarro, confuso e incoeren- te.

Toda pessoa adulta tem, em média, durante um sono de 8 horas, 4 a 5 períodos intercalados de sonho. Sonhamos aproximadamente 25% do tempo em que estamos dormindo. Uma dúvida frequente é se a experiência que ocorreu durante a noite foi uma projeção ou apenas um sonho. Pode-se traçar alguns pa- ralelos que ajudam nesta diferenciação:

1. A projeção permite o planejamento das ações ainda na vigília física anterior. É possível esco- lher os "sonhos"; 2. Duas pessoas podem se encontrar e atuar em uma mesma projeção, inclusive com confirma- ção posterior, o que não é possível nos sonhos;
3. A projeção com lucidez contínua desde a vi- gília anterior até a vigília posterior é condição ímpar, de certeza íntima para o projetor da realidade da experiência;
4. A coerência dos fatos ocorre somente na pro- jeção, enquanto nos sonhos predominam situa- ções aleatórias sem compromisso entre si;
5. Nos sonhos ocorre a exaltação emocional por meio da maior ativação do sistema límbico. Na projeção, a expansão consciencial, o bem- estar e a sensação de liberdade conferem-nos maior serenidade;
6. Os sonhos são absurdos cognitivos. As proje- ções mantêm as faculdades do raciocínio, juízo crítico e de associação de ideias;
7. Durante o período projetivo é possível manter a noção espacial e temporal a respeito do corpo, que permanece inerte na base física;
8. Numa projeção existe a capacidade decisória, a possibilidade de alterar situações e a autodeterminação direta de atos e vivências. Em um sonho a pessoa não tem controle sobre as representações que surgem, sendo mera expectadora das ocorrências.


O sonho se apresenta como conjunto de sensações ou representações mais ou menos realistas que surgem sem o controle do indivíduo e que, na maioria das vezes, tem um caráter bizarro, confuso e incoerente


Benefícios da projetabilidade lúcida


Ao sair de si é que verdadeiramente a pessoa se conhece. Deixando o corpo com lucidez redescobre-se o mundo conhecido sob uma nova ótica e esta nos desafia a empreender mudanças nos valores pessoais. A percepção de uma realidade extrafísica dinâmica, onde interagem consciências humanas, extrafísicas e projetadas, amplia o entendimento de nossa capacidade assistencial para muito além do grupo familiar e de pessoas mais próximas.


Obriga-nos a pensar o mundo de uma forma universal e amplia o conceito individual de ética para muito mais do que é possível perceber em apenas uma vida. A descoberta de si mesmo em vidas anteriores e posteriores obriga-nos a eliminar preconceitos e imaturidades mais grosseiras, por exemplo, pensar na morte como o fim de tudo ou solução para qualquer problema. Ao perceber-se lúcido e atuante fora do corpo, a morte perde o sentido e pode-se descartar a tanatofobia (medo de morrer).

Ao vencer esse medo, base de todos os outros, tornamo-nos mais audaciosos em nossas atitudes. Ao acessar informações de vidas passadas e futuras, passamos a entender a realidade das múltiplas vidas e podemos obter maior compreensão das relações familiares, por exemplo.


ReferênciaVIEIRA , Waldo. Projeciologia - panorama das Experiências da Consciência fora do corpo humano. 5a. ed., Editares.



Revista Psique