quarta-feira, 23 de junho de 2010

dito e contradito 2

André Leclerc • Canadense, mas trabalha no Brasil desde 1995. É pesquisador do CNPq pela Universidade Federal do Ceará em Fortaleza e doutor pela Universidade do Québec. Atua em Filosofia da Mente e da Linguagem e possui diversas publicações nessas duas áreas, dentre elas: Meanings, Actions and Agreements. Manuscrito (UNICAMP). , v.32-1, p.249 - 282, 2009

Não

Permita-me descartar de início o dualismo das substâncias. Defender a substancialidade da mente, hoje, não passa de uma curiosidade teológica (pace Swinburne). O verdadeiro debate, há décadas, acontece no seio do Naturalismo Filosófico e opõe os fisicalistas (ou materialistas) reducionistas – partidários da identidade mente-cérebro –, e os fisicalistas não reducionistas que se dividem em vários campos: superveniência, emergentismo, naturalismo biológico, funcionalismo, etc. Neste último caso, a relação não é de identidade, e sim de dependência: o mental, que não é mais concebido como algo substancial, é amarrado ao físico.

O problema com a identidade mente-cérebro é a identidade. Dizer de uma sensação de dor que ela não é nada a não ser a inervação de certas fibras nervosas não é suficiente para calar a pergunta: mas, esta sensação atual de dor no joelho, tão diferente da dor de dente que senti ontem, qua sensação de dor, não tem propriedades diferentes das propriedades da atividade eletroquímica que a causa ou da qual ela depende? Nossa intuição, invariavelmente, quer responder “sim”. Se a identidade é aquela relação regida pelo princípio da indiscernabilidade dos idênticos (Leibniz), se x e y são idênticos se e somente se x e y têm exatamente as mesmas propriedades (e não importa o tipo de propriedade), então, a relação entre a dor e sua base física subjacente, dificilmente, é de identidade.

A mente é “a face representacional do cérebro” (Dretske). As propriedades semânticas dos conteúdos representacionais como ter um sentido, uma referência, uma força, um conteúdo verocondicional, são propriedades relacionais, da mesma família que ser acerca de algo ou representar algo. A questão mais fundamental da semântica filosófica é precisamente a questão de saber como passamos “do físico para o semântico”? Um problema paralelo em Filosofia da Mente, conhecido como o Problema de Brentano, pode ser formulado da seguinte maneira: como um sistema físico, um organismo, por exemplo, pode produzir e manter estados que são acerca de algo distinto de si mesmo? Será que a atividade eletroquímica do cérebro pode produzir algo como a intencionalidade, a propriedade relacional de “ser acerca de algo”, uma propriedade que, obviamente, não sobrevém localmente? Como nossos estados mentais adquirem tal característica? Aqui a teoria da identidade não tem resposta clara.

Tenho uma fotografia em preto e branco do meu pai no dia de seu casamento. É uma fotografia de meu pai, mas o que existe realmente na fotografia é uma distribuição de pontos pretos e brancos sobre um pedaço de papel; meu pai não está “realmente” na fotografia. Se a mente é a face representacional do cérebro, então, neste sentido e por analogia, os conteúdos representacionais e mentais dependem da atividade eletroquímica do cérebro, mas não podem estar por inteiro na cabeça.

Revista Filosofia

Dito e contradito 1

Você acha que cérebro e mente são a mesma coisa?



Gustavo Leal Toledo • Graduado em Filosofia na UERJ e mestre pela PUC-Rio com a dissertação O Argumento dos Zumbis na Filosofia da Mente: são zumbis físicos logicamente possíveis? Doutorou-se na mesma instituição. Tem diversas publicações no Brasil e no exterior. Atualmente é professor da UFSJ, no campus Alto Paraopeba

SIM


Teorias que tentam entender a mente sem ser através do cérebro sofrem o que Jaegwon Kim chamou de sobredeterminação, ou seja, descobrem que todos os poderes causais da mente podem ser explicados pelo cérebro. Ficam, então, com uma mente que “não serve para nada”. Uma possível saída para isso é ressignificar o sentido de ‘mente’, ‘cérebro’, ‘causação’, mas não me parece que mudar o significado de um termo realmente muda algo. Podemos entender o termo ‘causa’ de modo que a causação mental esteja incluída e assim passa a fazer sentido dizer que a mente causa algo. Mas o problema é anterior, pois qual é o real motivo para mudar o significado do termo ‘causa’ senão a nossa própria vontade de que a mente possa causar algo? Mas de onde tiramos que a mente causa algo? De onde tiramos que ela existe?

A resposta costuma ser que é óbvio que ela exista. Mas esta mesma resposta foi oferecida, por séculos, sobre a existência de Deus, bruxas, etc. No entanto, parece haver algo diferente na mente, pois eu tenho uma mente, ela sou eu. Se levanto para ir à padaria é porque quero ir à padaria e desejo comer pão. Querer e desejar são explicações mentalistas para o comportamento. Tal tipo de explicação é conhecido como Psicologia Popular, mas será que devemos continuar usando-a agora que temos novas explicações com poderes preditivos até maiores? O caso da depressão é paradigmático neste sentido: cada vez mais a explicamos não com a Psicologia Popular, mas com a Neurofisiologia e a Neuroquímica.

Uma das críticas a esta tentativa de naturalização da mente é o Argumento dos Zumbis, de David Chalmers, que diz que se um zumbi for fisicamente idêntico a um ser humano, mas sem consciência e nem estados qualitativos (qualia), e for logicamente possível (concebível), então o materialismo é falso. No entanto, tal zumbi teria que ser indistinguível do ser humano. O problema deste argumento surge porque até mesmo o próprio zumbi não poderia saber que é um zumbi, o que significa que nós poderíamos ser um zumbi e não saber!

Se isto for verdade, o argumento fracassa. A resposta que Chalmers oferece a esta crítica é decidir aceitar tal paradoxo, no entanto, isso não é um movimento admissível, pois estamos discutindo a possibilidade lógica de algo. Ele também diz que “devemos levar a consciência a sério”, mas isso também não resolve nada, pois o problema é justamente como isso deve ser feito. Assim, Chalmers estaria pressupondo o que deve explicar. Estaria colocando o coelho dentro da cartola para depois tirá-lo de lá.

Temos, então, que embora não existam argumentos definitivos para reduzir a mente ao cérebro, ou mesmo eliminá-la, não há também bons argumentos contrários a isso. O que nos resta é investigar os próprios motivos de termos começado esta discussão. Fica cada vez mais claro que o verdadeiro problema difícil não é discutir se a mente é ou não o cérebro, mas sim descobrir os motivos de, tradicionalmente, acreditarmos que ela não é. Será que ainda existem motivos bons o suficiente?



Revista filosofia

Relógio Interno 2

Autor: Andrew Bennett Helmann Tradução: Nilza Laiz Nascimento da Silva

"Os níveis de vasopressina aumentam durante o sono e cai a atividade dos neurônios que regulam

Alerta da sede

Trudell e Bourque testaram a hipótese de que a baixa atividade do relógio interno pode permitir que os neurônios osmossensoriais ativem mais facilmente os neurônios liberadores de vasopressina, o que significaria maior retenção de água e menor produção de urina durante o sono.
Para realizar tal tarefa, eles isolaram fatias finas do cérebro de ratos contendo neurônios sensoriais intactos, neurônios liberadores de vasopressina e "neurônios - relógio" [neurônios reguladores do relógio interno]. Mesmo depois de removidos do cérebro, os "neurônios - relógio" continuaram a marcar o tempo.
A seguir, a dupla de pesquisadores estimulou os neurônios sensoriais e registrou a atividade elétrica nos neurônios liberadores de vasopressina a fim de monitorar a comunicação entre os dois grupos de células. E então, observaram o efeito das "células- -relógio" neste circuito.
Quando eles não ativavam as "células-relógio" durante o período de sono, a comunicação entre as células sensoriais e as células liberadoras de vasopressina era mais fácil. Ao contrário, quando eles ativavam as "células-relógio", esta comunicação diminuía notadamente.
Os resultados sugerem que as "células- relógio" funcionam como um regulador da água.
Quando sua atividade está alta, elas impedem que as células sensoriais orientem as células secretoras para liberar vasopressina. E quando as "células-relógio" estão menos ativas, as células sensoriais conseguem facilmente instruir as células secretoras para liberar o hormônio, garantindo assim que o corpo mantenha suas reservas de água.
Colwell salienta que esse estudo foi realizado com ratos, que são animais noturnos. Embora o ciclo da vasopressina e a atividade dos neurônios do relógio biológico sejam semelhantes nos seres humanos e nos ratos, permanece a questão de se o mesmo mecanismo se aplica para as espécies que dormem à noite.
"Mostramos esse mecanismo para este circuito, mas é possível que os neurônios-relógio regulem outros circuitos de maneira semelhante; isso, contudo, precisa ainda ser estudado", afirmou Bourque. Ele conjeturou que estudos futuros poderão revelar se o mesmo mecanismo regula a fome, a sonolência e outros aspectos fisiológicos relacionados aos ritmos circadianos.

Revista Psique

RELÓGIO INTERNO 1

Dispositivo que controla os neurônios da 'sede' é o alvo de estudo de neurofisiologistas que descobriram o porquê do nosso corpo não precisar de água durante o sono


Autor: Andrew Bennett Helmann Tradução: Nilza Laiz Nascimento da Silva


Traduções da revista Nature com exclusividade para o veículo revista no Brasil


Estudo sugere que o relógio interno do corpo ajuda a regular um hormônio responsável pelo armazenamento de água, o que faz as idas ao banheiro e a desidratação noturna não serem um padrão.

Em artigo publicado na revista Nature Neuroscience, os neurofisiologistas Eric Trudel e Charles Bourque do Instituto de Pesquisas do Centro de Saúde da McGill University, em Montreal, no Canadá, apresentaram um mecanismo p pelo qual o sistema circadiano - ou relógio interno - controla a hidratação do organismo.

Ao permitir que as células reguladoras do nível de água ativem as células que liberam vasopressina - hormônio que determina o armazenamento de água - o sistema circadiano mantém o corpo hidratado durante o sono.

"Sabemos há anos que o nível do hormônio vasopressina fica alto durante o sono. Mas ninguém sabia como isso ocorria. Esse grupo de pesquisadores identificou um mecanismo fifisiológico muito preciso que explica como isso ocorre", disse Christopher Colwell, neurocientista da Escola de Medicina David Geffen, da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, que estuda o sono e os ritmos circadianos.

O corpo regula seu volume de água principalmente equilibrando a entrada de água, através do mecanismo da sede, com a perda de líquido pela produção da urina. Como as pessoas não bebem água durante o sono, o corpo tem que minimizar a sua perda para se manter suficientemente hidratado. Os cientistas sabiam que baixos níveis de água estimulam um grupo de células chamadas neurônios osmossensoriais, que por sua vez ativam outro grupo de neurônios a liberar a vasopressina na corrente sanguínea. Os níveis de vasopressina aumentam durante o sono e cai a atividade dos neurônios que regulam o relógio interno.

Revista Psique

A BELEZA DOS PÁSSAROS EM VOO

De encontro à religiosidade, percebemos que a beleza está nos mínimos detalhes do nosso planeta, pois tudo se resume a imagem e semelhança da perfeição de Deus







Rubem Alves




A literatura é um processo de transformações alquímicas. O escritor transforma sua carne e o seu sangue em palavras e diz aos seus leitores: "Leiam! Comam! Bebam! Isso é a minha carne! Isso é o meu sangue!" A experiência literária é um ritual antropofágico. Antropofagia não é gastronomia. É magia. Come-se o corpo de um morto para se apropriar de suas virtudes.

Não é esse o objetivo da eucaristia, ritual antropofágico supremo? Come-se e bebe-se a carne e o sangue de Cristo para se ficar semelhante a ele. Eu mesmo sou o que sou pelos escritores que devorei... E, se escrevo, é na esperança de ser devorado pelos meus leitores.

Foi longo o itinerário que segui. Minha infância foi uma infância feliz. Vivi anos de pobreza, mas não tenho desses anos nem uma memória triste. As crianças ficam felizes com pouca coisa. Não era preciso dizer os nomes dos deuses nem eu os sabia. O sagrado aparecia, sem nome, no capim, nos pássaros, nos riachos, na chuva, nas árvores, nas nuvens, nos animais. Isso me dava alegria! Como no paraíso... No paraíso não havia templos. Deus andava pelo jardim, extasiado, dizendo: "Como é belo! Como é belo!" A beleza é a face visível de Deus.

Foi minha mãe quem primeiro me falou de Deus. Ensinou-me a orar ao ir para a cama. Há a morte, o terror que no escuro nos espreita. Há uma alma que sobrevive à morte e vai para algum lugar. Há um Deus que é o senhor do mundo depois da morte. Meu sentimento foi medo. Rompia-se a felicidade paradisíaca. Será o medo o início da religião? Medo da morte. Medo de abandonar este mundo luminoso!

Do inferno nunca tive medo. Talvez tenha sido essa a razão por que nunca consegui ser ortodoxo. Pois o fato é que o inferno é a base sobre a qual a Teologia Cristã se construiu - exceção feita aos místicos. A Teologia Cristã tradicional é um pião enorme que gira sobre essa aguda ponta de ferro chamada inferno. Mesmo quando se faz silêncio sobre ele, é ele que mantém o pião rodando: quem está em cima do pião que roda não pode ver a ponta de ferro que torna possível o seu giro. Sem essa ponta, o pião para de girar e cai. Pois Cristo não morreu na cruz para nos salvar do inferno, como reza a Teologia Ortodoxa?

Inconscientemente nunca acreditei que Deus pudesse lançar uma alma ao inferno por toda a eternidade. É crueldade demais! E também nunca fui atraído pelas propaladas delícias do céu. Para dizer a verdade, não conheço nem uma pessoa que esteja ansiosa por deixar as pequenas alegrias desta vida para gozar eternamente a felicidade celestial perfeita. As pessoas religiosas que conheço cuidam bem da saúde, controlam o colesterol, a pressão, a glicemia... Elas querem continuar por aqui. Não querem partir.

Esta alegria de viver me faz encontrar Deus a passear pelo jardim ao vento fresco da tarde. Como eu, Deus prefere as delícias deste mundo material às delícias espirituais do céu. É claro que, se ele estivesse feliz nos céus, não teria criado a terra. Pois Deus, segundo os teólogos, em virtude de sua perfeição, não pode criar o pior. Faz sempre o melhor. Assim, o paraíso tem de ser melhor que os céus que já havia. E Deus gostou tanto da terra e de seus jardins que resolveu para ela se mudar em definitivo e se encarnou eternamente. Deus ama a vida sobre a terra, mesmo com a terrível possibilidade de morrer. Porque a vida é bela a despeito de tudo.



Rubem Alves é escritor, educador e psicanalista




Revista Psique

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Velocidade máxima, espaços reduzidos 2

por Tatiana Martins Alméri

Em síntese, podemos afirmar que a discussão sobre o materialismo histórico e a luta de classes proposta por Karl Marx ajudou-nos a compreender e muito a questão dessa "troca" da vida pelo dinheiro, e a fazer com que o tempo e o espaço tomassem outras dimensões. Entretanto, não podemos esquecer que isso somente foi possível com a complementação da dominação simbólica legitimada, definida por Bourdieu.

Tylor e o evolucionismo

O antropólogo britânico Edward Burnett Tylor acreditava na igualdade da natureza humana, o que possibilitava a comparação de raças do mesmo grau de civilização. Entendia, ainda, que a desigualdade era resultante da desigualdade de estágios no processo de evolução, que estaria disposto numa "escala de civilização" (LARAIA. 2001, p.32). Dessa maneira, na configuração do pensamento de Tylor, o qual era influenciado pela época em que vivia, era apoiada em um evolucionismo unilinear (todas as culturas deveriam passar pelas mesmas etapas de evolução). Entretanto, esse pensamento constituía um processo discriminatório, preconceituoso o qual acabava sugerindo a superioridade de alguns e a inferioridade de outros.

O supercontinente Pangeia

Por volta de 230 milhões de anos, ao final do Paleozoico, aconteceu a quarta e última aglutinação continental, com a orogênese que deu origem ao supercontinente Pangeia (WINDLEY, 1995). Os continentes formavam um bloco único, dessa maneira a distância entre eles era muito menor do que se compararmos com a maneira que é a configuração atual.

Revista Sociologia

Velocidade máxima, espaços reduzidos 1

Suscitada pela chamada globalização, a discussão sobre a relação entre tempo e espaço - e seus impactos no sistema capitalista e na sociedade moderna - é um dos principais problemas sociológicos contemporâneos

por Tatiana Martins Alméri



Conforme o século 21 vai tomando seu espaço, a sensação de que os dias são um pouco mais curtos parece aumentar. As bases tecnológicas que supostamente viriam para proporcionar uma diminuição de gasto de tempo e de energia dos seres humanos com relação ao trabalho parece não cumprir a sua missão tão explicitamente, e os dias ficam a cada dia mais curtos, as semanas passam cada vez mais rápidas e a vida se torna veloz. Até chegar a hora que o tempo para, a reflexão acontece e o momento de olharmos em frente ao espelho e analisarmos as marcas que o tempo deixou chega, é hora de revermos as aprendizagens, os convívios, e assumirmos: É, a vida voou!

Essa passagem de tempo vem se modificando conforme as mudanças que a sociedade vai proporcionando, e o sentimento de que o tempo passa mais rápido está totalmente ligado à impressão de que o espaço também está diminuindo. A cada dia que passa essa relação entre vida, tempo e espaço vai se configurando de uma maneira mais intensa.


Isso vem se modificando a cada estágio social, tanto do sistema capitalista quanto dos sistemas que o precederam. Quanto maior o desenvolvimento do sistema atual, maior a sensação de que o tempo passa mais rápido e que a distância entre as pessoas, os países, as coisas e as buscas pelas soluções de problemas tendem a diminuir. "Nas diversas culturas humanas, os indivíduos e grupos experimentaram variadas formas de se relacionar com o espaço e com o tempo; e, em um certo número dessas culturas, suas diferentes épocas ou estágios evolutivos viram mudanças nessa relação. De nosso ponto de vista ocidental e eurocêntrico, algumas dessas diferentes experiências seguem [infelizmente] ainda uma linha evolutiva que parece ligada ao caráter progressivo ou cumulativo da história de suas sociedades, por oposição ao caráter estacionário de outras." (FARIA, 1999)


Coloco o grifo, "infelizmente", pois o conceito do desenvolvimento do significado de cultura como algo evolutivo, influenciado pela teoria evolutiva de Charles Darwin, já foi derrubado teoricamente há tempos e com clareza argumentativa. Dessa maneira, a cultura deixou de ser um objeto sistemático e passou a ser analisada não mais como um processo evolutivo, com a possibilidade de desigualdades de estágios e além do estabelecimento de uma escala civilizatória, a qual deveria começar na selvageria e chegar à civilização, em cujo "ápice" estaria a civilização europeia. No entanto, esse tipo de pensamento continua sendo usado pelo senso comum.


Globalização, essa Pangeia


Essa linha evolutiva também orienta, neste caso, porém, de uma maneira positiva, a relação entre o tempo e o espaço. "Desde o surgimento do capitalismo, ao final da Idade Média europeia, a forma de vivenciar o espaço e o tempo passou a sofrer constantes modificações, modificações estas sempre num mesmo sentido, em que os espaços vão diminuindo e o tempo parece transcorrer de forma cada vez mais acelerada. É resultante desse movimento a circunstância de homens e mulheres que vivem este fim de século [século 20] experimentarem, como nunca na história, uma sensação de encurtamento das distâncias geográficas e de aumento da velocidade das transformações sociais, políticas e econômicas" (FARIA, 1999).


Esse aumento de velocidade das transformações é, atualmente, uma característica muito própria do sistema capitalista, essa sensação de diminuição de tempo e de espaço, de aumento das influências culturais - estimuladas pela mídia - e de que o mundo se tornou novamente uma Pangeia, que pode ser chamada de globalização.


A globalização, essa eficiente estrutura global se caracteriza de uma maneira tão hábil graças à capacidade de padronizações simbólicas geradas pelos países que possuem um maior acesso ao topo da hierarquia econômica do sistema capitalista, ou seja, os países desenvolvidos.


Os sistemas simbólicos são, para Bourdieu (1989), instrumentos de aprendizagens, conhecimento e de comunicação que institui a edificação de realidades, trazendo uma interpretação mundana muitas vezes impostas por dominadores, o que acaba legitimando essa dominação. Isso traz uma impressão de naturalidade ocasionada pela violência simbólica.


Por intermédio dos meios de comunicação, da política, da educação, da economia, a globalização age de uma maneira a transformar o tempo em um literal dinheiro. Como a busca do sistema capitalista é a concentração de dinheiro, o tempo é vendido e, juntamente com ele, a vida. A reflexão de Bourdieu sobre a identidade dominada então passa estar limitada pelas imposições da globalização, a qual traz um paradoxo: aumento de reflexão ou restrição ao pensamento dominante?





Revista Sociologia